28 de julho de 2013

ALQUIMIA DO VERBO


   Para mim. A história das minhas loucu-
ras.
   Há muito me gabava de possuir todas
as paisagens possíveis, e julgava irrisórias
as celebridades da pintura e da poesia mo-
derna.
    Gostava das pinturas idiotas, em por-
tas,  decorações, telas circenses, placas,
iluminuras populares; a literatura fora de
moda, o latim da igreja, livros eróticos sem
ortografia, romances de nossos antepassa-
dos, contos de fadas, pequenos livros in-
fantis, velhas óperas, estribilhos ingênuos,
rítmos ingênuos.
     Sonhava  com as cruzadas, viagens de
descobertas de que não existem relatos, re-
públicas sem histórias, guerras de religião
esmagadas, revoluções de costumes, des-
locamentos de raças e continentes: acredi-
tava em todas as magias.
     Inventava a cor das vogais! - A  negro
E branco, I vermelho, O azul, U ver-
de. Regulava a forma e o movimento de
cada consoante, e , com ritmos institivos,
me vangloriava de  ter inventado um verbo
poético acessível, um dia ou outro, a todos
os sentidos. Era comigo traduzí-los.
Foi primeiro um experimento. Escre-
via silêncios, noites, anotava o inexprimível.
Fixava vertigens.

Rimbaud (Franca)

Tradução de Paulo Hecker Filho

26 de julho de 2013

EMILY DICKINSON




To make a prairie it  
takes a clover and a bee.  
One clove , and a bee,  
And revery.  
The revery alone will do,  

if bees are few

Emily Dickinson (USA)

25 de julho de 2013

POEMA DE CECÍLIA MEIRELES

 

Cântico XIII

Renova-te.
Renasce em ti mesmo.
Multiplica os teus olhos, para verem mais.
Multiplica-se os teus braços para semeares tudo.
Destrói os olhos que tiverem visto.
Cria outros, para as visões novas.
Destrói os braços que tiverem semeado,
Para se esquecerem de colher.
Sê sempre o mesmo.
Sempre outro. Mas sempre alto.
Sempre longe.
E dentro de tudo.


Cecília Meireles (Brasil)

POETAS DE AMANHÃ



Poetas de amanhã: arautos, músicos,
cantores de amanhã !
Não é dia de eu me justificar
E dizer ao que vim;
Mas vocês, de uma nova geração,
Atlética, telúrica, nativa,
Maior que qualquer outra conhecida antes
- levantem-se: pois têm de me justificar !

Eu mesmo faço apenas escrever
Uma ou duas palavras
Indicando o futuro;
Faço tocar a roda para frente
Apenas um momento
E volto para a sombra
Correndo

Eu sou um homem que, vagando
A esmo, sem de todo parar,
Casualmente passa a vista por vocês
E logo desvia o rosto,
Deixando assim por conta de vocês
Conceituá-lo e aprová-lo,
A esperar de vocês

As coisas mais importantes. 

 Walt Whitman (USA)
Trad.: Eduardo Francisco Alves 
           Geir Campos

24 de julho de 2013

PAPOULAS DE JULHO



Papoulas de Julho

Ó  papoulinhas, pequenas flamas do inferno,
Então não fazem mal?

Vocês vibram. É impossível tocá-las.
Eu ponho as mãos entre as flamas. Nada me queima.


E me fatiga ficar a olhá-las
Assim vibrantes, enrugadas e rubras, como a pele de uma boca.

Uma boca sangrando.
Pequenas franjas sangrentas!

Há vapores que não posso tocar.
Onde estão os narcóticos, as repugnantes cápsulas?

Se eu pudesse sangrar, ou dormir!
Se minha boca pudesse unir-se a tal ferida!

Ou que seus licores filtrem-se em mim, nessa cápsula de vidro,
Entorpecendo e apaziguando.
Mas sem cor. Sem cor alguma.

 Sylvia Plath (USA)
Tradução:

Afonso Félix de  Souza. 


Poppies In July

Little poppies, little hell flames,
Do you do no harm?

You flicker. I cannot touch you.
I put my hands among the flames. Nothing burns

And it exhausts me to watch you
Flickering like that, wrinkly and clear red, like the skin of a mouth.

A mouth just bloodied.
Little bloody skirts!

There are fumes I cannot touch.
Where are your opiates, your nauseous capsules?

If I could bleed, or sleep! -
If my mouth could marry a hurt like that!

Or your liquors seep to me, in this glass capsule,
Dulling and stilling.


But colorless. Colorless.

Sylvia Plath

HETERÓNIMOS

        

Antonio Machado, Fernando Pessoa, Juan Gelman crearon de un plumazo sus heterónimos, unos señores que tuvieron la virtud de complementarlos, ampliarlos, hacer que de algún modo fueran más ellos mismos. También yo (vanitas vanitatum) quise tener el mío, pero la única vez que lo intenté resultó que mi joven heterónimo empezó a escribir desembozadamente sobre mis cataratas, mis espasmos asmáticos, mi herpes zoster, mi lumbago, mi hernia diafragmática y otras fallas de fábrica. Por si todo eso fuera poco se metía en mis insomnios para mortificar a mi pobre, valetudinaria conciencia. Fue precisamente ésta la que me pidió: por favor, colega, quítame de encima a este estorbo, ya bastante tenemos con la crítica.
Sin embargo, como los trámites para librarse de un heterónimo son más bien engorrosos, opté por una solución intermedia, que fue nombrarlo mi representante plenipotenciario en la isla de Pascua. Por cierto que desde allí acaba de enviarme un largo poema sobre la hipotética vida sexual de los moairs. Reconozco que no está nada mal. Se nota mi influencia.



Mario Benedetti (Uruguai)

ASSIM É A POESIA



Não sei onde acordei, a luz perde-se ao fundo do corredor, longo, longo, com quartos dos dois lados, um deles é o teu, demoro muito, muito a chegar lá, os meus passos são de menino, mas os teus olhos esperam-me, com tanto amor, tanto, que corres ao meu encontro com medo que tropece no ar – ó musicalíssima.


Eugénio de Andrade (Portugal)

In Vertentes do Olhar 

SALAM SUR GAZA

Foto: Bernard Bardinet



Dans les bras de la lumière
Et la beauté du monde

En dépit du plomb durci
A la barbe des sanguinaires

Ces flocons de neige
Pour apaiser la terre

Du feu qui lui brûle les lèvres
Pourquoi aimez-vous tant les cendres

Quand la braise nourrit mon cœur
Tendre dans les cours des rivières

Pourquoi détruisez-vous mon limon
Réduit en poussière

Le soleil vous fait-il peur
De voir votre propre ombre


Paris 30 décembre 2008

Tahar Békri  (Tunísia)

23 de julho de 2013

GOSTO DE LER A MARTHA

Não é pra me gabar, mas todas as tardes um garrincha vem cantar pra mim. Não é metáfora. É perto da janela do meu quarto e não consigo vê-lo. Já procurei várias vezes mas não sei onde está.

Quando vou dormir, o ritmo é dos grilos, e se tem chuva os sapos vêm dar o tom mais grave.
 é lindo, isso é consolo, isso é religião.
Ando muito povoada, carente de silêncio. Acho que era disso que eu precisava quando pegava uma bacia de alumínio, colocava dentro as tampas de ferro das bocas do fogão e sacudia um som infernal, ferros no alumínio. Não tinha pensamento que ficasse!
Hoje nem isso dá pra fazer, as bacias são de plástico e a tampa do fogão é presa.


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Apareceu um homem do mar
remando num barco improvisado
(estava em um cesto de balão sem envelope
um balão marinho voando no mar)

O homem marinho me chamou
eu respondi
(por mais de uma vez me perdi e
ele me levou delicadamente
pela cintura)

Quando vi
eu estava em pé nos ombros
do homem do mar
(a água ventando meu cabelo)
Descemos milhas submarinas
até que a criatura marinha nua, linda,
fincou seus pés no aluvião.



Martha Galrão (Brasil)

BEBIDO O LUAR


Bebido o luar, ébrios de horizontes,
Julgamos que viver era abraçar
O rumor dos pinhais, o azul dos montes
E todos os jardins verdes do mar.

Mas solitários somos e passamos,
Não são nossos os frutos nem as flores,
O céu e o mar apagam-se exteriores
E tornam-se os fantasmas que sonhamos.

Por que jardins que nós não colheremos,
Límpidos nas auroras a nascer,
Por que o céu e o mar se não seremos
Nunca os deuses capazes de os viver.



Sophia de Mello Breyner Andresen (Portugal)

ALMOUROL - FRANCISCO DE LACERDA

Continuando a divulgar música clássica portuguesa...



Castelo de Almourol - rio Tejo, Portugal

22 de julho de 2013

MALANGATANA


Tela de Malangatana - Mocambique

Imagem: http://associazionecamoes.blogspot.co.uk/

A NOSSA LÍNGUA...


Uma língua é o lugar donde se vê o mundo

Vergílio Ferreira


Na minha língua... 
cada verso é uma  outra geografia. 

Manuel Alegre

21 de julho de 2013

UMA FACA SÓ LÂMINA



Assim como uma bala
enterrada no corpo,
fazendo mais espesso
um dos lados do morto;

assim como uma bala
do chumbo mais pesado,
no músculo de um homem
pesando-o mais de um lado;

qual bala que tivesse um
vivo mecanismo,
bala que possuísse
um coração ativo

igual ao de um relógio
submerso em algum corpo,
ao de um relógio vivo
e também revoltoso,

relógio que tivesse
o gume de uma faca
e toda a impiedade
de lâmina azulada;

assim como uma faca
que sem bolso ou bainha
se transformasse em parte
de vossa anatomia;

qual uma faca íntima
ou faca de uso interno,
habitando num corpo
como o próprio esqueleto

de um homem que o tivesse,
e sempre, doloroso
de homem que se ferisse

contra seus próprios ossos.


João Cabral De Melo Neto (Brasil)

A CASA


Na minha infância quando chovia
batia sobre o telhado
uma pancada macia
a noite vinha de fora
e dentro de casa caía
meu olho esquerdo dormia
enquanto o outro velava
havia portas rangendo
lá fora o vento miava
no fundo da noite a casa
parece que navegava
meu coração passeava
por uma sala sombria
por este lado se entrava
por este outro se olhava
e por nenhum se saía

Na minha infância quando chovia
batia sobre o meu peito
uma suave agonia
a noite vinha de longe
e dentro da gente caía
meu pai que sempre saía
numa viagem calada
havia vozes chamando
na boca da madrugada
no fundo da noite a casa
parece que despertava
assombração que passava
no sopro da ventania
por este lado se entrava
por este outro se olhava
e por nenhum se saía



Cacaso (Brasil)

CRONICA DE CLARICE LISPECTOR



Quantas Vezes a Insónia é um Dom


Mas quantas vezes a insónia é um dom. De repente acordar no meio da noite e ter essa coisa rara: solidão. Quase nenhum ruído. Só o das ondas do mar batendo na praia. E tomo café com gosto, toda sozinha no mundo. Ninguém me interrompe o nada. É um nada a um tempo vazio e rico. E o telefone mudo, sem aquele toque súbito que sobressalta. Depois vai amanhecendo. As nuvens se clareando sob um sol às vezes pálido como uma lua, às vezes de fogo puro. Vou ao terraço e sou talvez a primeira do dia a ver a espuma branca do mar. O mar é meu, o sol é meu, a terra é minha. E sinto-me feliz por nada, por tudo. Até que, como o sol subindo, a casa vai acordando e há o reencontro com meus filhos sonolentos.



Clarice Lispector (Brasil)

19 de julho de 2013

POEMA DE CESÁRIO VERDE
















De Tarde

Naquele pique-nique de burguesas,
Houve uma coisa simplesmente bela,
E que, sem ter história nem grandezas,
Em todo o caso dava uma aguarela.

Foi quando tu, descendo do burrico,
Foste colher, sem imposturas tolas,
A um granzoal azul de grão-de-bico
Um ramalhete rubro de papoulas.

Pouco depois, em cima duns penhascos,
Nós acampámos, inda o Sol se via;
E houve talhadas de melão, damascos,
E pão-de-ló molhado em malvasia.

Mas, todo púrpuro a sair da renda
Dos teus dois seios como duas rolas,
Era o supremo encanto da merenda
O ramalhete rubro das papoulas!

                                        Cesário Verde (Portugal) 

MORANDI: UM EXEMPLO



Anoitecera. Eu falava de Morandi como exemplo de uma arte poética que, apesar da desmaterialização dos objectos e da aura de silêncio que os imobilizava na sua pureza, não se desvincula nunca da realidade mais comum e fremente, quando alguém me interrompeu:  – Eu conheci-o, era intratável, vivia em Bolonha com duas irmãs, quase só saía de casa para ir às putas. – Esta bem, volvi eu, se ele precisava disso para depois pintar como Vermeer e Chardin, abençoadas sejam todas as putas do céu e da terra. Ámem.

Eugénio de Andrade (Portugal)

In Vertentes do Olhar

EVOCAÇÃO DE SILVES (POESIA LUSO-ÁRABE)

Silves - O Castelo - foto de Albert Cariaux



Eia, Abú Bacre, saúda os meus lares em Silves e pergunta-lhes
se, como penso, ainda se recordam de mim.

Saúda o Palácio das Varandas da parte de um donzel
que sente perpétua saudade daquele alcácer.

Ali moravam guerreiros como leões e brancas
gazelas. E em que belas selvas e em que belos covis!

Quantas noites passei divertindo-me à sua sombra
com mulheres de cadeiras opulentas e talhe fatigado

Brancas e morenas que produziam na minha alma
o efeito das espadas refulgentes e das lanças obscuras!

Quantas noites passei deliciosamente junto a um recôncavo
do rio com uma donzela cuja pulseira rivalizava com a curva da corrente!

O tempo passava e ela servia-me o vinho do seu olhar
e outras vezes o do seu vaso e outras o da sua boca.

As cordas do seu alaúde feridas pelo plectro estremeciam-me
como se ouvisse a melodia das espadas nos tendões do colo inimigo.

Ao retirar o seu manto, descobriu o talhe, florescente ramo
de salgueiro, como se abre o botão para mostrar a flor.


Mohâmede Ibne Abade Almutâmide - Rei Poeta

Beja (1040-1095)

18 de julho de 2013

A NELSON MANDELA


(Descer os degraus da Humanidade. Ver o mar escuro do fenómeno
errante do atrito de armas. Sentir com as palavras presas nos lábios
o perfume da discriminação distribuído a preço derrisório em Durban,
Pretória, Soweto...Olhar na propagação de sinais sombrios o desenho
da desunião e de outras dores inspiradas que nos vigiam enquanto
os homens degrau a degrau sobem o horizonte cruel. E assim surgimos
na árvore do quotidiano, quotidiano vivo, ingrediente da nossa tragédia.)



João Maimona (Angola)

17 de julho de 2013

AS MURALHAS DA NOITE


         A mão ia para as costas da madrugada.
         As mulheres estendiam as janelas da alegria
         nos ouvidos onde não se apagavam as alegrias.

Entre os dentes do mar acendiam-se braços.

         Os dias namoravam sob a barca do espelho.
         Havia uma chuva de barcos enquanto o dia tossia.
         E da chuva de barcos chegavam colchões,
         camas, cadeiras, manadas de estradas perdidas
         onde cantavam soldados de capacetes
         por pintar no coração da meia-noite.

         Eram os barcos que guardavam as muralhas
         da noite que a mão ouvia nas costas
da madrugada entre os dentes do mar.



João Maimona (Angola)