26 de novembro de 2013

ARTE POÉTICA


Arte Poética V

Na minha infância, antes de saber ler, ouvi recitar e aprendi de cor um antigo poema tradicional português, chamado Nau Catrineta. Tive assim a sorte de começar pela tradição oral, a sorte de conhecer o poema antes de conhecer a literatura.

Eu era de facto tão nova que nem sabia que os poemas eram escritos por pessoas, mas julgava que eram consubstanciais ao universo, que eram a respiração das coisas, o nome deste mundo dito por ele próprio.

Pensava também que, se conseguisse ficar completamente imóvel e muda em certos lugares mágicos do jardim, eu conseguiria ouvir um desses poemas que o próprio ar continha em si.

No fundo, toda a minha vida tentei escrever esse poema imanente. E aqueles momentos de silêncio no fundo do jardim ensinaram-me, muito tempo mais tarde, que não há poesia sem silêncio, sem que se tenha criado o vazio e a despersonalização.

Um dia em Epidauro — aproveitando o sossego deixado pelo horário do almoço dos turistas — coloquei-me no centro do teatro e disse em voz alta o princípio de um poema. E ouvi, no instante seguinte, lá no alto, a minha própria voz, livre, desligada de mim.

Tempos depois, escrevi estes três versos:

A voz sobe os últimos degraus
Oiço a palavra alada impessoal
Que reconheço por não ser já minha. 


(Lido na Sorbonne, em Paris, em Dezembro de 1988,
por ocasião do encontro intitulado Les Belles Étrangères.)

Sophia de Mello Breyner Andresen (Portugal)

22 de novembro de 2013

POEMA DE WESLEY CORREIA

Gostei  e fui procurando por mais.



ALTER FACE

para NMF

É tarde!
E, talvez, muito cedo
para os labirintos inócuos de Rimbaud:
a estranheza do mundo em um copo d'agua
É tarde, meu bem.
Nem o relógio se atreve dizer horas.
Paira, na sala de estar, o odor
salutar dos versos nocivos.
É tarde, querida.
Tão tarde a ponto dos sustos
e dos prazeres
ficarem de mal de mim.
É tarde, Gullar:
não há teorias
nem críticas
nem vanguardas.
O que há: é o poema a vomitar-se.
O poema que apenas Kafka conheceu.
É tarde. Muitíssimo tarde, amor!
Para provocar - sendo assim tão tarde -
a cama a caneca
de café a televisão
tiram a roupa
frente meus olhos
é tarde angústia é tarde alegria é tarde gastrite
dor de cabeça e mau funcionamento dos rins
é tarde, vida e sonho
é tarde, sono
mais seguro dormir e, quiçá, não será amanhã tão
tarde!
Quiçá, tudo
se recomporá
como
no primeiro início
do instante inabitado.



Wesley Barbosa Correia (Brasil)

8 de novembro de 2013

POEMAS DE Suffit Kitab Akenat


POEMAS:

18Vives uma fuga
Veloz que nem conheces
O canto que cantas

22
Vê a sombra rápida
Que passa sem pensar
E pensa que passa

109Educar é fácil
Se treinares teu filhinho
Para te educar

***

Lendo o horóscopo nas entrelinhas
Interpreto a nostalgia de um gesto evasivo
A obscura citação do amor encurralado.
Piano e flauta andina ou cítara de doze cordas
Recuperem a doce memória submersa por aluviões
De versos frígidos sem resposta.
A voz arrasta-se pelas paredes
Tensa e fria
Pétala castanha contra o vidro embaciado
De florir o tambor do peito.
Ó meu amado! 


Suffit Kitab Akenat (1905-?) é uma escritora nascida em Tesseney, na fronteira entre Axum e a Eritreia, naquilo que se convencionou chamar o «corno de África». Segundo Pires Laranjeira (Professor da Universidade de Coimbra), autor do elucidativo prefácio da obra “Máximas Mínimas e outros textos”, publicado em língua portuguesa pela editora Landy.

Retirado do blog: Sopa de Poesia



5 de novembro de 2013

TODAS AS COISAS...



Todas as coisas têm o seu tempo, todas passam
debaixo do céu segundo seu tempo
e há um tempo para todo o propósito debaixo do céu.

Ah! Certamente tornarei a isto por este tempo de vida.
Ao tempo determinado, tornarei a isto por este tempo de vida.
Porque dirão: eis um homem deste século,
um homem de África, debaixo da sua mangueira
e debaixo da sua papaeira, um homem
com seu desejo de audiência e história,
sua voz aberta e sua digníssima pele,
falando da África deste tempo e de seu povo,
seus órgãos do canto.
Um homem que não habita seguro em sua freguesia
e seu sémen destina às filhas de Mindelo,
de Acra, de Lagos, de Nairobi, Dar-Es-Salam ou Addis-Abeba,
e cai sobre a terra quando for seu tempo de cair
e de se juntar a seus pais, cara a cara, indo pelo caminho de toda a terra,
ao seu tempo, ao tempo determinado,
sem o lamento da América nem o escárnio da Europa.


João Vário (Cabo Verde)