26 de dezembro de 2014

AFROINSULARIDADE



Deixaram nas ilhas um legado
de híbridas palavras e tétricas plantações

engenhos enferrujados proas sem alento
nomes sonoros aristocráticos
e a lenda de um naufrágio nas Sete Pedras

Aqui aportaram vindos do Norte
por mandato ou acaso ao serviço do seu rei:
navegadores e piratas
negreiros ladrões contrabandistas
simples homens
rebeldes proscritos também
e infantes judeus
tão tenros que feneceram
como espigas queimadas

Nas naus trouxeram
bússolas quinquilharias sementes
plantas experimentais amarguras atrozes
um padrão de pedra pálido como o trigo
e outras cargas sem sonhos nem raízes
porque toda a ilha era um porto e uma estrada sem regresso
todas as mãos eram negras forquilhas e enxadas

E nas roças ficaram pegadas vivas
como cicatrizes — cada cafeeiro respira agora um
escravo morto.

E nas ilhas ficaram
incisivas arrogantes estátuas nas esquinas
cento e tal igrejas e capelas
para mil quilómetros quadrados
e o insurrecto sincretismo dos paços natalícios.
E ficou a cadência palaciana da ússua
o aroma do alho e do zêtê d'óchi
no tempi e na ubaga téla
e no calulu o louro misturado ao óleo de palma
e o perfume do alecrim
e do mlajincon nos quintais dos luchans

E aos relógios insulares se fundiram
os espectros — ferramentas do império
numa estrutura de ambíguas claridades
e seculares condimentos
santos padroeiros e fortalezas derrubadas
vinhos baratos e auroras partilhadas

Às vezes penso em suas lívidas ossadas
seus cabelos podres na orla do mar
Aqui, neste fragmento de África
onde, virado para o Sul,
um verbo amanhece alto
como uma dolorosa bandeira.


Conceição Lima (S. Tomé e Príncipe)


               De O Útero da Casa (2004)

23 de dezembro de 2014

EM MEMÓRIA DE CHICO MENDES


Chegam notícias do Brasil, o Chico
Mendes foi assassinado, a morte
enrola-se agora nos primeiros frios,
nem sequer a tristeza tem sentido,
a bola continua em órbita, um dia
estoira, o universo ficará mais limpo. 


Eugénio de Andrade (Portugal)

20 de dezembro de 2014

POEMA PARA A QUADRA NATALÍCIA 3: BENJAMIN ZEPHANIA - THE BRITISH




















The British

Take some Picts, Celts and Silures
And let them settle,
Then overrun them with Roman conquerors.

Remove the Romans after approximately 400 years
Add lots of Norman French to some
Angles, Saxons, Jutes and Vikings, then stir vigorously.
Mix some hot Chileans, cool Jamaicans, Dominicans,
Trinidadians and Bajans with some Ethiopians, Chinese,
Vietnamese and Sudanese.

Then take a blend of Somalians, Sri Lankans, Nigerians
And Pakistanis,
Combine with some Guyanese
And turn up the heat.

Sprinkle some fresh Indians, Malaysians, Bosnians,
Iraqis and Bangladeshis together with some
Afghans, Spanish, Turkish, Kurdish, Japanese
And Palestinians
Then add to the melting pot.

Leave the ingredients to simmer.

As they mix and blend allow their languages to flourish
Binding them together with English.

Allow time to be cool.

Add some unity, understanding, and respect for the future,
Serve with justice
And enjoy.

Note: All the ingredients are equally important. Treating one ingredient better than another will leave a bitter unpleasant taste.

Warning: An unequal spread of justice will damage the people and cause pain. Give justice and equality to all.



Benjamin Zephaniah (Inglaterra)

19 de dezembro de 2014

POEMA PARA A QUADRA NATALÍCIA 2: GRAÇA PIRES - SOMENTE POERQUE É NATAL

     

Somente porque é Natal


     ele veio nascer à minha porta
     como se fora eu a sua mãe.
     É de linho o pano que cobre
     meus braços,levemente
     encurvados, para neles caber
     o berço de embalar
     o menino sem presépio.
     A pausa do vento
     a preparar a neve
     lembra-me  o desamparo
     de outras crianças, tantas,
     a quem a fome quebranta o choro.
     E digo: venham habitar
     para sempre o meu poema
     como se fossem meus filhos.


    

     Graça Pires (Portugal)

18 de dezembro de 2014

POEMA PARA A QUADRA NATALÍCIA 1: ADRIAN MITCHELL - SERES HUMANOS



SERES HUMANOS


olha para as tuas mãos
         bonitas e úteis as tuas mãos
                 não és um macaco
         não és um papagaio
         não és um paulatino lóris
                  nem um míssil inteligente
tu és humano

          não britânico
não americano
               não israelita
não palestiniano
tu és humano

não católico
não protestante
    não muçulmano
     não hindu
tu és humano

   todos começamos humanos
e acabamos humanos
       humanos no princípio
       humanos no fim
 somos humanos
ou não somos nada

nada senão bombas
e gás venenoso
nada senão armas
e torturadores
nada senão escravos
      da Ganância e da Guerra
     se não formos humanos

olha para o teu corpo
com os seus assombrosos sistemas
    de redes de nervos e canais de sangue
      pensa na tua mente
               que pode pensar em si própria
e em todo o universo

olha para o teu rosto
que pode tolher-se de pavor
   ou derreter-se de amor
olha para toda essa vida
     toda essa beleza
tu és humano
eles são humanos
    nós somos humanos
vamos tentar ser humanos

dançar!


                                                                            (Tradução de Ana Maria Chaves) 



HUMAN BEINGS 


look at your hands
  your beautiful useful hands
       you're not an ape
    you're not a parrot
  you're not a slow loris
    or a smart missile
       you're human
    
       not british
    not american
      not israeli
  not palestinian
    you're human

     not catholic
  not protestant
    not muslim
       not hindu
  you're human

  we all start human
    we end up human
       human first
          human last
      we're human
    or we're nothing

  nothing but bombs
     and poison gas
  nothing but guns
     and torturers
  nothing but slaves
  of Greed and War
  if we're not human

           look at your body
  with its amazing systems
  of nerve-wires and blood canals
     think about your mind
   which can think about itself
  and the whole universe

           look at your face
   which can freeze into horror
           or melt into love
     look at all that life
           all that beauty
           you're human
     they are human
     we are human
  let's try to be human


         dance!

Adrian Mitchell (Inglaterra) 

12 de dezembro de 2014

EMILY DICKINSON


Ter Medo? De quem terei?
Não da Morte – quem é ela?
O Porteiro de meu Pai
Igualmente me atropela.

Da Vida? Seria cómico
Temer coisa que me inclui
Em uma ou mais existências -
Conforme Deus estatui.

De ressuscitar? O Oriente
Tem medo do Madrugar
Com sua fronte subtil?

Mais me valera abdicar!

Emily Dickinson


(Tradução Jorge de Senna)

IMPRESSIONIOSTA


Uma ocasião,
meu pai pintou a casa toda
de alaranjado brilhante.
Por muito tempo moramos numa casa,
como ele mesmo dizia,
constantemente amanhecendo.



 Adélia Prado  (Brasil)

10 de dezembro de 2014

SEJA ASSIM O POEMA



This Be The Verse

They fuck you up, your mum and dad.  
    They may not mean to, but they do.  
They fill you with the faults they had
    And add some extra, just for you.

But they were fucked up in their turn
    By fools in old-style hats and coats,  
Who half the time were soppy-stern
    And half at one another’s throats.

Man hands on misery to man.
    It deepens like a coastal shelf.
Get out as early as you can,
    And don’t have any kids yourself.



Seja Assim o Poema

Fodem-te a vida, o papá e a mamã,
Mesmo que não seja essa a intenção.
Deixam-te todos os vícios que tenham
E mais dois ou três, por especial atenção.

Mas no tempo deles também foram fodidos
Por tolos trajando jaquetão e coco.
Que quando não estavam piegas ou hirtos
Saltavam, raivosos, à veia, ao pescoço.

E assim é legada a infelicidade,
Vai mais e mais fundo, como o fundo do mar.
Foge mal tenhas oportunidade
E quanto a teres filhos – isso nem pensar.

Philip Larkin (Reino Unido)


(Tradução de Rui Carvalho Homem) 

3 de junho de 2014

NOVO HERBERTO HÉLDER - A MORTE SEM MESTRE


Porto Editora
ISBN: 978-972-0-04668-0 

«A Morte sem Mestre» é o mais recente livro de poesia de Herberto Helder. Escrito em 2013 e integralmente inédito, «Tudo quanto neste livro possa parecer acidental é de facto intencional» - «[...] peço por isso que um qualquer erro de ortografia ou sentido / seja um grão de sal aberto na boca do bom leitor impuro.», escreve-nos o autor.


Herberto Helder tem por hábito encadernar os seus livros com papel de embrulho castanho, escrevendo por fora com caneta de feltro vermelha o título e o nome do autor. A sobrecapa da presente edição evoca esse hábito, reproduzindo a sua caligrafia. É ainda incluído um CD, com cinco poemas lidos por Herberto.

28 de maio de 2014

AMBIGUIDADE


Desafiavas-me escondido por detrás das vírgulas
E rias, rias iludido que nas reticências frívolas
Arranjavas abrigo, um lar amigo para nossas demências
Ahahahah...como os nossos risos cresciam...
Balões de primaveras no outono de nossas vidas
Unguentos miraculosos sarando nossas feridas
Não...não falo de quimeras, mas sim das longas esperas
Com que perpetuamos os sentidos, reais e vividos
Nas rimas pintamos feras, e moldamos de barro
Muitas prosas, sonetos feitos duetos, laranjais frescos
De perfume índigo...dos sons fizemos esferas,
Bancos de jardins bebendo ópios de trigo.
Nas muralhas das odes...lindos arcos arabescos
Arquitetura debruada a linho...
Na ambiguidade da poesia...a fragrância de lilás e pinho!!!



Dinah Raphaellus (Portugal)

13 de maio de 2014

FESTA (Alejandra Pizarnik)



tinha estendido minha orfandade
sobre a mesa, como um mapa.
Desenhei o itinerário
até meu lugar ao vento.
Os que chegam não me encontram.
Os que espero não existem.

E tinha bebido licores furiosos
para transmutar os rostos

num anjo, em copos vazios. 


Alejandra Pizarnik (Argentina) 1936 - 1972

10 de maio de 2014

HOLOCAUSTO BRASILEIRO - UM LIVRO DE CHOQUE

Editado agora em Portugal, um livro que resgata as vítimas do crime praticado 

 pelo Estado Brasileiro.


Sinopse:

Durante décadas, milhares de pacientes foram internados à força, sem diagnóstico de doença mental, num enorme hospício na cidade de Barbacena, em Minas Gerais. Ali foram torturados, violentados e mortos sem que ninguém se importasse com seu destino. Eram apenas epilépticos, alcoólatras, homossexuais, prostitutas, meninas grávidas pelos patrões, mulheres confinadas pelos maridos, moças que haviam perdido a virgindade antes do casamento.
Ninguém ouvia seus gritos. Jornalistas famosos, nos anos 60 e 70, fizeram reportagens denunciando os maus tratos. Nenhum deles — como faz agora Daniela Arbex — conseguiu contar a história completa. O que se praticou no Hospício de Barbacena foi um genocídio, com 60 mil mortes. Um holocausto praticado pelo Estado, com a conivência de médicos, funcionários e da população.
____________________________

UM PUNGENTE RETRATO DE  ABANDONO E HORROR

Neste livro-reportagem fundamental, a premiada jornalista Daniela Arbex resgata do esquecimento um dos capítulos mais macabros da nossa história: a barbárie e a  desumanidade praticadas, durante a maior parte do século XX, no maior hospício do Brasil, conhecido por Colônia, situado na cidade mineira de Barbacena. Ao fazê-lo, a autora traz à luz um genocídio cometido, sistematicamente, pelo Estado brasileiro, com a conivência de médicos, funcionários e também da população, pois nenhuma violação dos direitos humanos mais básicos se sustenta por tanto tempo sem a omissão da sociedade.
Pelo menos 60 mil pessoas morreram entre os muros da Colônia. Em sua maioria, haviam sido internadas à força. Cerca de 70% não tinham diagnóstico de doença mental. Eram epiléticos, alcoólatras, homossexuais, prostitutas, gente que se rebelava ou que se tornara incômoda para alguém com mais poder. Eram meninas grávidas violentadas por seus patrões, esposas confinadas para que o marido pudesse morar com a amante, filhas de fazendeiros que perderam a virgindade antes do casamento, homens e mulheres que haviam extraviado seus documentos. Alguns eram apenas tímidos. Pelo menos 33 eram crianças.
Quando chegavam ao hospício, suas cabeças eram raspadas, suas roupas arrancadas e seus nomes descartados pelos funcionários, que os rebatizavam. Daniela Arbex devolve nome, história e identidade aos pacientes, verdadeiros sobreviventes de um holocausto, como Maria de Jesus, internada porque se sentia triste, ou Antônio Gomes da Silva, sem diagnóstico, que, dos 34 anos de internação, ficou mudo durante 21 anos porque ninguém se lembrou de perguntar se ele falava.
Os pacientes da Colônia às vezes comiam ratos, bebiam água do esgoto ou urina, dormiam sobre capim, eram espancados e violados. Nas noites geladas da Serra da Mantiqueira, eram deixados ao relento, nus ou cobertos apenas por trapos. Pelo menos 30 bebês foram roubados de suas mães. As pacientes conseguiam proteger sua gravidez passando fezes sobre a barriga para não serem tocadas. Mas, logo depois do parto, os bebês eram tirados de seus braços e doados.
Alguns morriam de frio, fome e doença. Morriam também de choque. Às vezes os eletrochoques eram tantos e tão fortes, que a sobrecarga derrubava a rede do município. Nos períodos de maior lotação, 16 pessoas morriam a cada dia. Ao morrer, davam lucro. Entre 1969 e 1980, 1.853 corpos de pacientes do manicômio foram vendidos para 17 faculdades de medicina do país, sem que ninguém questionasse. Quando houve excesso de cadáveres e o mercado encolheu, os corpos foram decompostos em ácido, no pátio da Colônia, diante dos pacientes, para que as ossadas pudessem ser comercializadas. Nada se perdia, exceto a vida.
No início dos anos 60, depois de conhecer a Colônia, o fotógrafo Luiz Alfredo, da revista O Cruzeiro, desabafou com o chefe: “Aquilo é um assassinato em massa”. Em 1979, o psiquiatra italiano Franco Basaglia, pioneiro da luta pelo fim dos manicômios que também visitou a Colônia, declarou numa coletiva de imprensa: “Estive hoje num campo de concentração nazista. Em lugar nenhum do mundo, presenciei uma tragédia como essa”.

Sobre a autora

Daniela Arbex é uma das jornalistas do Brasil mais premiadas de sua geração. Repórter especial do jornal Tribuna de Minas há 18 anos, tem no currículo mais de 20 prêmios nacionais e internacionais, entre eles três prêmios Esso, o mais recente recebido em 2012 com a série “Holocausto brasileiro”, dois prêmios Vladimir Herzog (menção honrosa), o Knight International Journalism Award, entregue nos Estados Unidos (2010), e o prêmio IPYS de Melhor Investigação Jornalística da América Latina e Caribe (Transparência Internacional e Instituto Prensa y Sociedad), recebido por ela em 2009, quando foi a vencedora, e 2012 (menção honrosa). Em 2002, ela foi premiada na Europa com o Natali Prize (menção honrosa).

Book trailer


Texto retirado de: http://geracaoeditorial.com.br/blog/holocausto-brasileiro/ 

6 de maio de 2014

POBRES DOS NOSSOS RICOS




A maior desgraça de uma nação pobre é que em vez de produzir riqueza, produz ricos.

Mas ricos sem riqueza.

Na realidade, melhor seria chamá-los não de ricos mas de endinheirados.

Rico é quem possui meios de produção.

Rico é quem gera dinheiro e dá emprego.

Endinheirado é quem simplesmente tem dinheiro, 
ou que pensa que tem. Porque, na realidade, o dinheiro é que o tem a ele.

A verdade é esta: são demasiados pobres os nossos "ricos".

Aquilo que têm, não detêm.

Pior: aquilo que exibem como seu, é propriedade de outros.

É produto de roubo e de negociatas.

Não podem, porém, estes nossos endinheirados usufruir em tranquilidade de tudo quanto roubaram.

Vivem na obsessão de poderem ser roubados.

Necessitavam de forças policiais à altura.

Mas forças policiais à altura acabariam por lançá-los a eles próprios na cadeia. 


Necessitavam de uma ordem social em que houvesse poucas razões para a criminalidade.

Mas se eles enriqueceram foi graças a essa mesma desordem...
 

Mia Couto (Mo
çambique)

2 de maio de 2014

FLORES DO MAIS





Devagar escreva
uma primeira letra
escreva
nas imediações construídas
pelos furacões;
devagar meça
a primeira pássara
bisonha que
riscar
o pano de boca
aberto
sobre os vendavais;
devagar imponha
o pulso
que melhor
souber sangrar
sobre a faca
das marés;
devagar imprima
o primeiro olhar
sobre o galope molhado
dos animais; devagar
peça mais
e mais e
mais.





Ana Cristina Cesar, Rio de Janeiro (1952-1983) - Poeta e tradutora, pertenceu à " geração mimeógrafo" ou poesia marginal da década de 70.

28 de abril de 2014

DONGOS


Mulher pequena, descobres no sal
dos meus ombros o suave gotejar
dos mitos incinerados na batalha de Ambuíla
com a sua longa sede de dongos submersos.

Dongos? Sim, dongos é o que crias
sobre a pele dos séculos nunca ressequida
de dizer sou povo.

À luz dessa janela vista assim de um ângulo rente ao chão
te amo outra vez olhando a copa dos mamoeiros no auge do verão.

O sol é o mesmo cão rafeiro castanho muito claro com
manchas brancas no pescoço
comendo da sua lata o tutano das promesas.


E eu vi-te desceres do céu. E a terra tremeu.


José Luís Mendonça (Angola) 

25 de abril de 2014

40 ANOS: 1974 - 2014







GRÂNDOLA, VILA MORENA

Grândola, vila morena
Terra da fraternidade
O povo é quem mais ordena
Dentro de ti, ó cidade
Dentro de ti, ó cidade
O povo é quem mais ordena
Terra da fraternidade
Grândola, vila morena
Em cada esquina um amigo
Em cada rosto igualdade
Grândola, vila morena
Terra da fraternidade
Terra da fraternidade
Grândola, vila morena
Em cada rosto igualdade
O povo é quem mais ordena
À sombra duma azinheira
Que já não sabia a idade
Jurei ter por companheira
Grândola a tua vontade
Grândola a tua vontade
Jurei ter por companheira
À sombra duma azinheira
Que já não sabia a idade



José Afonso (Portugal) 


23 de abril de 2014

PARA O DIA INTERNACIONAL DO LIVRO



Uma homenagem a um dos grandes escritores do mundo, falecido recentemente.


22 de abril de 2014

A SECÇÃO DOS CONGELADOS


Truncadas, indefinidas, passam
na memória como filmes mudos
pequenas histórias de amor
carnal. Os grandes caudais da noite
sempre desaguam na tarde salobra
e rasa: Janeiro amolece a tinta
das paredes, levamos à rua uma cara
mais fechada, e depois, na secção
dos congelados, não sabemos distinguir
o que sentimos além do frio que represa
as coisas todas: caminhamos sós
num privado bosque, convocamos
sombras que foram perdendo o nome,
sinais que não transportam já
um sentido automático de desejo
ou sofrimento. E contudo, à revelia
das certezas que não quiséramos ter,
acabamos sempre por tornar
às mesmas ruas, à noite insone
e imensa, onde nos dói descobrir,
na companhia dos outros,
o quanto nos reclama a solidão.


Rui Pires Cabral  (Portugal)

19 de abril de 2014

POEMA DE ÓSCAR OLIVA




Estos cielos que relampaguean
con cuchillos de sol mudo,
al quebrarse me hacen caer
junto a nubes estancadas
que han perdido toda memoria 
verbal y lección de labios.
Y la caída es sobre el ojo y su ejército
de semilla escrita.


Óscar Oliva (México)

Poema retirado do blogue Poéticas ao Acaso

18 de abril de 2014

APRENDIMENTOS


O filósofo Kierkegaard me ensinou que cultura é
o caminho que o homem percorre para se conhecer.
Sócrates fez o seu caminho de cultura e ao fim
falou que só sabia que não sabia de nada. Não tinha
as certezas científicas. Mas que aprendera coisas
di-menor com a natureza. Aprendeu que as folhas
das árvores servem para nos ensinar a cair sem
alardes. Disse que fosse ele caracol vegetado
sobre pedras, ele iria gostar. Iria certamente
aprender o idioma que as rãs falam com as águas
e ia conversar com as rãs. E gostasse mais de
ensinar que a exuberância maior está nos insetos
do que nas paisagens. Seu rosto tinha um lado de
ave. Por isso ele podia conhecer todos os pássaros
do mundo pelo coração de seus cantos. Estudara
nos livros demais. Porém aprendia melhor no ver,
no ouvir, no pegar, no provar e no cheirar. Chegou
por vezes de alcançar o sotaque das origens.
Se admirava de como um grilo sozinho, um só pequeno
grilo, podia desmontar os silêncios de uma noite!
Eu vivi antigamente com Sócrates, Platão, Aristóteles –
esse pessoal. Eles falavam nas aulas: Quem se
aproxima das origens se renova. Píndaro falava pra
mim que usava todos os fósseis linguísticos que
achava para renovar sua poesia. Os mestres pregavam
que o fascínio poético vem das raízes da fala.
Sócrates falava que as expressões mais eróticas
são donzelas. E que a Beleza se explica melhor
por não haver razão nenhuma nela. O que mais eu sei
sobre Sócrates é que ele viveu uma ascese de mosca.



Manoel de Barros (Brasil)

17 de abril de 2014

SOMBRA

Foto: Nelson Gandra


Vem, senhora das trevas
trazer-nos os contornos da luz
nos sulcos da noite
para que a extrema alvura dos gladíolos
ponha em nossas mãos aquele brilho,
quase divino, que só as sombras guardam
na vertical alteração de cada hora.


Graça Pires (Portugal)

De Caderno de significados, 2013

16 de abril de 2014

CERVEJA & REMORSOS


Os dias: deposito-os na pele. Deus (ou
qualquer coisa por Ele) está com certeza
por trás desta tarde de domingo (o
verão chegando ao fim imenso
em seus labirintos)
acautelamos derrotas milímetro a
milímetro. Por vezes
(mais distraídos) somos
tecnicamente felizes
abrindo nozes ao meio (quais cirurgiões das meninges)
desenrolando croissants à procura
do infinito. Mas
sabes quando sabe
a derrota apesar de ter vencido?
Não se vence por inteiro quando o
tempo é o inimigo.


João Luís Barreto Guimarães (Portugal)

14 de abril de 2014

DO BLOG POESIA & LlMITADA, WISLAVA SZYMBORSKA

Postagem retirada na íntegra do blog Poesia Ilimitada, que recomendo.
W. Szymborska é uma das minhas poetisas favoritas. No entanto, nunca foi publicada em Cores & Palavras.

http://poesiailimitada.blogspot.co.uk/2012/07/wisawa-szymborska-4.html 



Poesia Ilimitada nunca escondeu a imensa admiração que nutre pela obra da poetisa polaca Wisława Szymborska (2 de Julho de 1923 - 1 de Fevereiro de 2012), recentemente falecida. Nascida em Prowent, Szymborska já vivia em Cracóvia quando recebeu o Prémio Nobel da Literaturade 1996, segundo a Academia Sueca «por uma poesia que com precisão irónica permite que os contextos histórico e biológico reluzam em fragmentos de realidade humana».

Este extraordinário post dá inicio à colaboração deTeresa Swiatkiewicz no Poesia Ilimitada como correspondente de poesia polaca, através da tradução a partir do original, de uma amostra de dois poemas de cada um dos últimos três livros da poetisa polaca, ainda inéditos em Portugal: "Dois Pontos" (2005), "Aqui" (2009) e "Basta" (2012). Seis poemas, portanto, deSzymborska, na tradução de Teresa Swiatkiewicz. Muito obrigado, Teresa.



ESTÁTUA GREGA

Apesar da ajuda das pessoas e de outras forças da natureza,
mesmo assim, o tempo teve muito que fazer.
Primeiro privou-a do nariz, depois dos órgãos genitais,
um a um, dos dedos das mãos e dos pés,
com o decurso dos anos, dos braços, um após outro,
da coxa direita e da coxa esquerda,
das costas e das ancas, da cabeça e das nádegas,
e o que caiu por terra, desfez em pedaços,
cacos, cascalho, areia.

Quando algum dos vivos morre desta maneira,
a cada golpada, muito sangue escorre.

As estátuas de mármore, porém, perecem brancas
e nem sempre até ao fim.

Da estátua, de que aqui se fala, resta o tronco
que, em esforço, parece suster a respiração,
pois agora tem
de atrair
a si
toda a graça e peso
do resto que se perdeu.

E consegue-o,
ainda o consegue,
finge e deslumbra,
deslumbra e perdura –
E, aqui, também o Tempo merece um elogio:
deixou para amanhã
o que podia fazer hoje.


§



ABC

Jamais saberei
o que A. pensava de mim.
Se B. acabou por me perdoar.
Por que razão fingia C. que tudo estava bem.
Qual a quota-parte de D. no silêncio de E.
O que esperava F. se acaso algo esperava.
Por que fingia G. sabendo de tudo.
O que tinha H. a esconder.
O que queria I. acrescentar.
Se o facto de eu estar por perto,
teve algum significado
para J. e K. e para o resto do alfabeto.



§



ADOLESCENTE

Eu – adolescente?
Se, de repente, aparecesse aqui, agora, diante de mim,
saudá-la-ia como pessoa que me é próxima,
embora seja, para mim, estranha e distante?

Verter uma lágrima, beijar-lhe a testa
pela simples razão de termos
a mesma data de nascimento?

Tão poucas semelhanças entre nós,
quiçá, apenas os ossos são os mesmos,
a caixa craniana, as órbitas.

Já que os olhos dela parecem maiores,
as pestanas mais compridas, ela mais alta
e todo o seu corpo revestido
com uma pele lisa, sem mácula.

Na verdade, ligam-nos parentes e conhecidos,
no mundo dela, porém, quase todos estão vivos,
enquanto no meu já não há quase ninguém
deste círculo que tínhamos comum.

Somos tão diferentes uma da outra,
pensamos e falamos sobre coisas tão diferentes.
Ela pouco sabe –
mas com uma teimosia digna de melhores causas.
Eu sei muito mais –
mas sem nada saber ao certo.

Mostra-me uns poemas,
escritos com letra clara e cuidada,
como já há muito eu não escrevo.

Leio esses poemas e leio.
Bem, talvez este daqui,
se o reduzirmos
e corrigirmos aqui e ali.
O resto nada de bom augura.

A conversa está difícil.
No seu pobre relógio,
o tempo ainda é vacilante e barato.
No meu, já é muito mais caro e preciso.

Na despedida nada, um breve sorriso
e nenhuma comoção.

Somente quando se afasta
e, apressada, se esquece do cachecol.

Um cachecol de pura lã,
às riscas coloridas
feito em croché para ela
pela nossa mãe. 

Ainda hoje o tenho. 



§



VERMEER

Enquanto aquela mulher do Rijksmuseum,
em quietude pintada e concentração, 
dia após dia, não verter o leite 
do jarro para a vasilha,
o Mundo não merece 
o fim do mundo. 



§



NO AEROPORTO

Correm um para o outro de braços abertos,
exclamam ridentes: Até que enfim! Enfim! 
Ambos vestidos com agasalhos de inverno,
gorros de lã, 
cachecóis,
luvas,
botas,
mas só para nós. 
Porque um para o outro estão nus. 


Tradução de Ana KalewskaBeata Cieszyńska e Teresa Swiatkiewicz



§



A MÃO

Vinte e sete ossos,
trinta e cinco músculos,
cerca de duas mil células nervosas
em cada uma das pontas dos cinco dedos.
É quanto basta 
para escrever Mein Kampf
ou A Casinha do Ursinho Puff


Wisława Szymborska (Polónia)