30 de março de 2014

NOVIDADE - Poema de Paulo Seco


Novidade

Existências variadas
Tempos incontáveis
Sombras infinitas iludindo verdades.


Falsas saudades
Auroras negras cheirando vómitos
Luares quebrando noites covardes...

Novidade transcendente
Mares que secaram corpos submersos
Buscando frustrações colossais...

Vidas, vidas, vidas!!!

Novidade.

Amores, sabores, finalidade mortal!
Novidade, combinações ambígenas!

Novidade.

Lombas incendiando passos pálidos.
Humor hipnótico...

Ilusão
Não é verdade.

É novidade
É novidade


Paulo Seco (Angola)

29 de março de 2014

O AZUL DO NADA


Sobre o azul dos meus olhos passa
uma cortina encobre
teu rosto mascara
palavras.

No raso da água rasgo
meus olhos para te ver
mas nada: :
as palavras nadam

meus olhos sombras.
Sob o azul nadir

Cirandeira (Brasil)

27 de março de 2014

POSSE


Nos compêndios escolares não se falava da pequena ilha
solitária e perdida nos mares do Sul.
Não passavam por lá os barcos dos brancos
e o povo seguia a sua própria lei
que no entanto não estava escrita em livro algum.
Homens e mulheres viviam nus e amavam-se sem complicações
e comiam peixes que pescavam em canoas feitas com troncos de árvores
e carne de animais caçados com setas certeiras.

Atletas e guerreiros dançavam ao som de búzios e tambores
e as bailadeiras ondeavam contorcidos ritmos lentos
na toada triste de instrumentos de uma só corda.
E tinham seus deuses, seus santos, seus sacerdotes, seus feiticeiros,
e moravam em cubatas cobertas com palmas das palmeiras.

Mas do outro lado da terra
um dia
senhores de cara grave assentaram-se à volta de uma mesa com mapas em frente,
            falando de guerras,
            de bases para aviões,
            de pontos estratégicos...

Então veio à baila a ilha solitária perdida nos mares do Sul...
Semanas depois um barco de ferro chegou e fundeou
nas águas tranquilas da baía...
E um escaler veio para terra com homens loiros vestidos de branco,
trazendo, entre outras coisas,
            uma bandeira para a primeira afirmação imperial,
            um chicote para o primeiro castigo,
            um barril de pólvora para o primeiro massacre
            e um outro de álcool para o primeiro comércio!


Jorge Barbosa (Cabo Verde)

25 de março de 2014

A NEGRA


Negra gentil, carvão mimoso e lindo
Donde o diamante sai,
Filha do sol, estrela requeimada,
Pelo calor do Pai,

Encosta o rosto, cândido e formoso,
Aqui no peito meu,
Dorme, donzela, rola abandonada,
Porque te velo eu.

Não chores mais, criança, enxuga o pranto,
Sorri-te para mim,
Deixa-me ver as pérolas brilhantes,
Os dentes de marfim.

No teu divino seio existe oculta
Mal sabes quanta luz,
Que absorve a tua escurecida pele,
Que tanto me seduz.

Eu gosto de te ver a negra e meiga
E acetinada cor,
Porque me lembro, ó Pomba, que és queimada
Pelas chamas do amor;

Que outrora foste neve e amaste um lírio,
Pálida flor do vale,
Fugiu-te o lírio: um triste amor queimou-te
O seio virginal.

Não chores mais, criança, a quem eu amo,
Ó lindo querubim,
O amor é como a rosa, porque vive
No campo, ou no jardim.

Tu tens o meu amor ardente, e basta
Para seres feliz;
Ama a violeta que a violeta adora-te
Esquece a flor-de-lis.



Caetano de Costa Alegre (São Tomé e Príncipe)

24 de março de 2014

DEPOIS DAS ELEGIAS



Tela de Malangatana


depois das elegias o alcandorado grito
sobre o deserto chão do poema,
desinventário de européis no fulgor
em barrocas cornijas de caniço ao alto,
a chuva,
e o chão ele mesmo vertigem,
as estiradas praias de silêncio
no tapume como ínsulas do incerto mar
na cidade dos cedros, sonetos antigos,
negreiros tijolos de incisões
a desaguar


Luís Carlos Patraquim (Moçambique)

22 de março de 2014

UMA CANÇÃO DE PRIMAVERA


Nesta flor sem fruto que aspiramos
eu vejo coisas que ninguém descobre:
descubro o grão, o caule, os ramos,
e até o sulfato de cobre.

E ainda vejo o que ninguém mais vê:
vejo a flor a desenhar-se em fruto.
E quer ela o dê, quer não dê,
é esse o fim por que luto.


Antero Abreu (Angola)

21 de março de 2014

DIA MUNDIAL DA POESIA


No Meio do Caminho

No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.


Carlos Drummond de Andrade (Brasil)


Canção de Salabu

 Nosso filho caçula
mandaram-no p’ra S. Tomé
não tinha documentos
aiué!
nosso filho chorou
mamã enlouqueceu
aiué!
Mandaram-no p’ra S. Tomé

nosso filho já partiu
partiu no porão deles
aiué!
mandaram-no p’ra S. Tomé

cortaram-lhe os cabelos
não puderam amarrá-lo
aiué!
mandaram-no p’ra S. Tomé

nosso filho está a pensar
na sua terra, na sua casa
mandaram-no trabalhar
estão a mirá-lo, a mirá-lo

- mamã, ele há-de voltar
Ah! a nossa sorte há-de virar
Aiué!
mandaram-no p’ra S. Tomé

nosso filho não voltou
a morte levou-o
aiué!
mandaram-no p’ra  S. Tomé


Mário Pinto de Andrade (Angola)


Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.

Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo da esperança;
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem, se algum houve, as saudades.

O tempo cobre o chão de verde manto,
Que já coberto foi de neve fria,
E em mim converte em choro o doce canto.

E, afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto:
Que não se muda já como soía.



Luís de Camões (Portugal)

19 de março de 2014

CANTO AS VEIAS

Miradouro da Lua - Angola


a. as cores da terra

fomentava sementes da concórdia
hinos à longitude. cantava
veias ateadas no ventre
içava o sangue das bandeiras
rumo às violetas dissimulando
um mundo ardido na cor rubra
dos velhos panos.

b. o hino nacional

da língua orvalhada
um som ressalta
o sangue nacional.
tomo-lhe o fio arvora
palavra em parto.

e são já as sílabas
um pergaminho do
corpo cantado na
povoação.


João Tala (Angola)

17 de março de 2014

ATRAVÉS DO ESPELHO


 Através do Espelho

Foste sempre a estrangeira:
a da trança de lado
a do olhar de frente
o verde da tua bata
um verde
inconveniente
tinhas muitas moradas
partias e partias
não ficavas
e a meio da viagem
quando os outros seguiam
tu voltavas


Yvette K. Centeno  (Portugal)

13 de março de 2014

DOIS POEMAS DE GRAÇA PIRES

A poesia de Graça Pires é de uma enorme sintonia dentro de mim. Se quiserem um conselho, visitem o seu blogue, Ortografia do Olhar http://ortografiadoolhar.blogspot.co.uk/  vão ver que vai valer a pena.

Cézanne


Paciência

Hoje, pela tarde, fiz doce de tomate
e compota de maçã conforme velhas
receitas que minha mãe me ensinou.
Tu agradado de seres homem
ficaste frente ao mar ouvindo
Schubert (ou era Mozart?)
Mais tarde elogiaste muito os doces
e a paciência das mulheres para estas coisas.

Graça Pires (Portugal)
em Caderno de Significados, 2013

 Jean Dieuzaide


Com a chuva atravessada nos olhos

Vivem na linha costeira dos continentes
com a chuva atravessada nos olhos.
Respiram demoradamente o odor salgado
das algas que lhes perturbam o corpo.
Enfeitam os pulsos com amuletos feitos de búzios
vermelhos para que o medo das noites de temporal
não os ponha em frente da morte
quando, sonâmbulos, escondem o olhar
à lenta agonia dos peixes.

Graça Pires (Portugal)

em Uma Vara de Medir o Sol, 2012

10 de março de 2014

REVISTA PESSOA

Pessoa, revista de literatura lusófona. A revista que fala a sua língua


Além de ser uma clara homenagem ao poeta maior da língua portuguesa, a revista Pessoa busca firmar-se como espaço de democratização do acesso à produção literária de língua portuguesa. As edições serão distribuídas gratuitamente, com ênfase em bibliotecas, universidades, centros e espaços culturais, mas também nas ruas, diretamente a quem hoje ainda não tem trânsito junto aos equipamentos públicos, por falta de oportunidade ou de conhecimento. Com isso, privilegiamos o leitor comum, aqueles milhões de homens e mulheres que, sem o saber, na prática do dia a dia, são os verdadeiros artífices da língua, vivificando-a no espaço e projetando-a no tempo.

A Pessoa, com periodiciade trimestral, pretende também ser um agente de intermediação entre os sujeitos da criação cultural e os sujeitos da transformação da língua. Uma revista baseada em poucos, mas sólidos princípios: promoção da literatura de língua portuguesa, incentivo à leitura, respeito à diversidade de ideias e tendências, intercâmbio entre as culturas dos povos que formam a comunidade lusófona.


7 de março de 2014

DOIS POEMAS DE LUÍS MIGUEL NAVA


 A NOITE

A noite veio de dentro, começou a surgir do interior
de cada um dos objectos e a envolvê-los no seu halo negro.
Não tardou que as trevas irradiassem das nossas próprias
entranhas, quase que assobiavam ao cruzar-nos os poros.
Seriam umas duas ou três da tarde e nós sentíamo-las
crescendo a toda a nossa volta. Qualquer que fosse a pers-
pectiva, as trevas bifurcavam-na: daí a sensação de que,
apesar de a noite também se desprender das coisas, havia
nela algo de essencialmente humano, visceral. Como ins-
tantes exteriores que procurassem integrar-se na trama
do tempo, sucediam-se os relâmpagos: era a luz da tarde,
num estertor, a emergir intermitentemente à superfície das
coisas. Foi nessa altura que a visão se começou a fazer
pelas raízes. As imagens eram sugadas a partir do que
dentro de cada objecto ainda não se indiferenciara da luz
e, após complicadíssimos processos, imprimiam-se nos
olhos. Unidos aos relâmpagos, rompíamos então a custo
a treva nasalada.




SEM OUTRO INTUITO

Atirávamos pedras
à água para o silêncio vir à tona.
O mundo, que os sentidos tonificam,
surgia-nos então todo enterrado
na nossa própria carne, envolto
por vezes em ferozes transparências
que as pedras acirravam
sem outro intuito além do de extraírem
às águas o silêncio que as unia.




Luís Miguel Nava (Portugal)

5 de março de 2014

BLOG: MODO DE USAR & CO.

Eis um blog de grande qualidade que vivamente recomendo: Modo de Usar & Co.  

Eis uma postagem ali publicada:

Os medos: António Ferreira (1528-1569) e José Cutileiro (n. 1931)

Os medos


          A medo vivo, a medo escrevo e falo
          Hei medo do que falo só comigo;
          mas inda a medo cuido, a medo calo.

          Encontro a cada passo com um inimigo
          De todo bom espírito: este me faz
          Temer-me de mi mesmo, e do amigo.

          Tais novidades este tempo traz,
          Que é necessário fingir pouco siso,
          Se queres vida ter, se queres paz.

                      António Ferreira, poeta português, nascido em 1528.

§



          É a medo que escrevo. A medo penso,
          A medo sofro e empreendo e calo.
          A medo peso os termos quando falo.
          A medo me renego, me convenço.

          A medo amo. A medo me pertenço.
          A medo repouso no intervalo
          De outros medos. A medo é que resvalo
          O corpo escrutador, inquieto, tenso.

          A medo durmo. A medo acordo. A medo
          Invento. A medo passo, a medo fico.
          A medo meço o pobre, meço o rico.

          A medo guardo confissão, segredo,
          Dúvida, fé. A medo. A medo tudo.
          Que já me querem cego, surdo e mudo.

                          José Cutileiro, poeta português, nascido em 1931.

http://revistamododeusar.blogspot.co.uk/ 

4 de março de 2014

HERÁCLITO AO PÉ DO LAGO




Perto das águas verdes se juntam as veredas.
Ha silêncios por aí, pesados e abandonados pelo homem.
Cala-te, cão, que estás provando o vento com as narinas, cala-te.
Não despeças as recordações que vêm
chorando enterrar o rosto nas suas cinzas.

Apoiado nas cavacas estou adivinhando o meu destino
na palma duma folha outonal.
Tempo, quando pretendes tomar o caminho mais curto,
por onde vais?

Os meus passos ressoam na sombra
como se fossem frutos apodrecidos,
caidos duma árvore invisível.
Oh, tão rouca se tornou por causa de velhice a voz do manancial!

Todo o erguer da mão
é só uma dúvida de mais.
As dores reclamam irem
para o segredo fundo do torrão.

Espinhas estou atirando da beira ao lago,
com elas, em círculos, me estou desfazendo.


Lucian Blaga (Roménia)

(Tradução de Micaela Ghitescu)

Dedico esta postagem a Georgiana Bãrbulescu.

2 de março de 2014

LISBOA – CIDADE DAS CEVADILHAS E DO FADO (A HISTÓRIA DE UMA NOVA VIDA)



“De cantigas e saudades/Vive esta linda Lisboa!” – é assim que diz, no seu Fado das Tamanquinhas, Amália, que, no dia 1 de Maio de 2000, me fez tomar uma decisão que haveria de mudar a minha vida.
Numa manhã de Outubro de 1999, fiquei a saber, através da Rádio Bucareste, que morrera Amália Rodrigues, a „rainha do fado”, que eu conhecia desde os meus 15 anos; dois dias depois, num domingo à noite, vi, no canal de televisão Muzzik, o documentário biográfico „Uma Estranha Forma de Vida”, transmitido em homenagem a esta artista, sobre a qual os portugueses dizem que „tinha um acordo com os anjos cantadores que vivem em segredo nas igrejas de Lisboa”; alguns meses mais tarde, a 1 de Maio de 2000, vi, também no canal Muzzik, um resumo do concerto que Amália deu por ocasião da comemoração dos seus 50 anos de carreira artística.
Foi então que decidi aprender a Língua portuguesa, para entender as letras das suas músicas e as suas palavras.
E a decisão transformou-se numa paixão que me levava cada vez para mais perto de Portugal e da sua cultura. Descobri um povo sensível, profundo e cheio de lirismo. Descobri o fado, esse espelho da alma portuguesa – uma alma que sabe amar profundamente e sofrer ainda mais profundamente; uma alma que é namorada do mar, embora este lhe tenha roubado muitas vezes os seus queridos; uma alma apaixonada pela terra lusitana, sofrendo de saudades dela sempre que está longe.
Descobri uma História secular convulsiva, ao longo da qual os portugueses conservaram intacta a sua verdade nacional: uma terra banhada pelo mar, salpicada de montes e campos, rios e lagos, vestígios históricos e tesouros artísticos.
E descobri Luís de Camões, Eça de Queirós, Fernando Pessoa, Afonso Lopes Vieira, Pedro Homem de Mello, José Ramos Coelho ...
Entretanto, a paixão foi crescendo e dois anos depois transportou-me às terras muito sonhadas.
Ainda no avião, reconheci, sem que nunca a tivesse visto, a terra lusitana. A emoção carregou-me os olhos de lágrimas.
Logo ao sair do aeroporto em Lisboa, receberam-me as cevadilhas, com as suas copas altas e ricas, cheias de flores, brancas, cor-de-rosa, vermelhas... Receber-me-iam a cada quilómetro de autoestrada, em cada jardim e em cada quintal. E fiquei a pensar que, tal como a Holanda tem como sobrenome “o país das tulipas”, Portugal podia ser chamado ”o país das cevadilhas”.
Uma vez chegada a Lisboa, queria abraçá-la toda de uma vez, sem saber por onde começar...

Afinal, comecei (coincidência?) pela Casa Museu „Amália Rodrigues”, a casa onde vivera aquela que desencadeara todo este turbilhão que haveria de me mudar a vida. A emoção foi imensa. Senti muito intensamente a presença daquela personalidade deslumbrante que se autonomeava „estranha forma de vida”, que cativara e continua a cativar gente de todas as idades e de todos os cantos do mundo, mesmo não entendendo o português... Definitivamente, a linguagem da música e da alma é universal.
Continuei com os encantadores bairros antigos da Lisboa das sete colinas, com os seus elétricos característicos, quase um símbolo da cidade; com o cheirinho a sardinha assada, no Verão, e a castanhas em cartuxos de jornal, no Inverno; com o encanto envolvente do fado cantado sem microfone, à luz das velas, tecendo sonhos de amores românticos, muitas vezes terminados com lágrimas e sofrimento.
Conheci, depois, ao vivo, tudo o que conhecera através dos documentários que seguira com avidez em diversos canais de televisão: a Natureza, o Oceano Atlântico, os vestígios da História tumultuosa…
Na verdade, Portugal é um palmo de terra abençoada por Deus e com um povo quente e acolhedor; Homens que, como diz o fado „Uma Casa Portuguesa”, se lhes bate alguém à porta, convidam-no logo a sentar-se à mesa com eles; gente que me fez sentir, em Portugal, EM CASA.
Mais tarde, em 2005, Lisboa tornou-se a minha segunda casa e Portugal, a minha segunda pátria. E eu deixei de ser a professora de Química que tinha sido durante 29 anos e tornei-me uma pequena ponte entre os dois povos, entre as duas culturas.

Georgiana Bãrbulescu (Roménia)