7 de março de 2014

DOIS POEMAS DE LUÍS MIGUEL NAVA


 A NOITE

A noite veio de dentro, começou a surgir do interior
de cada um dos objectos e a envolvê-los no seu halo negro.
Não tardou que as trevas irradiassem das nossas próprias
entranhas, quase que assobiavam ao cruzar-nos os poros.
Seriam umas duas ou três da tarde e nós sentíamo-las
crescendo a toda a nossa volta. Qualquer que fosse a pers-
pectiva, as trevas bifurcavam-na: daí a sensação de que,
apesar de a noite também se desprender das coisas, havia
nela algo de essencialmente humano, visceral. Como ins-
tantes exteriores que procurassem integrar-se na trama
do tempo, sucediam-se os relâmpagos: era a luz da tarde,
num estertor, a emergir intermitentemente à superfície das
coisas. Foi nessa altura que a visão se começou a fazer
pelas raízes. As imagens eram sugadas a partir do que
dentro de cada objecto ainda não se indiferenciara da luz
e, após complicadíssimos processos, imprimiam-se nos
olhos. Unidos aos relâmpagos, rompíamos então a custo
a treva nasalada.




SEM OUTRO INTUITO

Atirávamos pedras
à água para o silêncio vir à tona.
O mundo, que os sentidos tonificam,
surgia-nos então todo enterrado
na nossa própria carne, envolto
por vezes em ferozes transparências
que as pedras acirravam
sem outro intuito além do de extraírem
às águas o silêncio que as unia.




Luís Miguel Nava (Portugal)

Um comentário:

António Eduardo Lico disse...

Duas belas poesias.
Bom fim de semana.