Arte Poética V
Na minha
infância, antes de saber ler, ouvi recitar e aprendi de cor um antigo poema
tradicional português, chamado Nau Catrineta. Tive assim a sorte de começar
pela tradição oral, a sorte de conhecer o poema antes de conhecer a literatura.
Eu era de facto
tão nova que nem sabia que os poemas eram escritos por pessoas, mas julgava que
eram consubstanciais ao universo, que eram a respiração das coisas, o nome
deste mundo dito por ele próprio.
Pensava também
que, se conseguisse ficar completamente imóvel e muda em certos lugares mágicos
do jardim, eu conseguiria ouvir um desses poemas que o próprio ar continha em
si.
No fundo, toda a
minha vida tentei escrever esse poema imanente. E aqueles momentos de silêncio
no fundo do jardim ensinaram-me, muito tempo mais tarde, que não há poesia sem
silêncio, sem que se tenha criado o vazio e a despersonalização.
Um dia em
Epidauro — aproveitando o sossego deixado pelo horário do almoço dos turistas —
coloquei-me no centro do teatro e disse em voz alta o princípio de um poema. E
ouvi, no instante seguinte, lá no alto, a minha própria voz, livre, desligada
de mim.
Tempos depois,
escrevi estes três versos:
A voz sobe os
últimos degraus
Oiço a palavra
alada impessoal
Que reconheço por
não ser já minha.
(Lido na
Sorbonne, em Paris, em Dezembro de 1988,
por ocasião do
encontro intitulado Les Belles Étrangères.)
Sophia de Mello Breyner Andresen (Portugal)
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