Paulo Autran, disse o poema sem o censurar:
POEMA DO MENINO
JESUS
Num meio-dia de
fim de Primavera
Tive um sonho
como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo
descer à terra.
Veio pela encosta
de um monte
Tornado outra vez
menino,
A correr e a
rolar-se pela erva
E a arrancar
flores para as deitar fora
E a rir de modo a
ouvir-se de longe.
Tinha fugido do
céu.
Era nosso demais
para fingir
De segunda pessoa
da Trindade.
No céu tudo era
falso, tudo em desacordo
Com flores e
árvores e pedras.
No céu tinha que
estar sempre sério
E de vez em
quando de se tornar outra vez homem
E subir para a
cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa
toda à roda de espinhos
E os pés
espetados por um prego com cabeça,
E até com um
trapo à roda da cintura
Como os pretos
nas ilustrações.
Nem sequer o
deixavam ter pai e mãe
Como as outras
crianças.
O seu pai era
duas pessoas -
Um velho chamado
José, que era carpinteiro,
E que não era pai
dele;
E o outro pai era
uma pomba estúpida,
A única pomba
feia do mundo
Porque nem era do
mundo nem era pomba.
E a sua mãe não
tinha amado antes de o ter.
Não era mulher:
era uma mala
Em que ele tinha
vindo do céu.
E queriam que
ele, que só nascera da mãe,
E que nunca
tivera pai para amar com respeito,
Pregasse a
bondade e a justiça!
Um dia que Deus
estava a dormir
E o Espírito
Santo andava a voar,
Ele foi à caixa
dos milagres e roubou três.
Com o primeiro
fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o segundo
criou-se eternamente humano e menino.
Com o terceiro
criou um Cristo eternamente na cruz
E deixou-o
pregado na cruz que há no céu
E serve de modelo
às outras.
Depois fugiu para
o Sol
E desceu no
primeiro raio que apanhou.
Hoje vive na
minha aldeia comigo.
É uma criança
bonita de riso e natural.
Limpa o nariz ao
braço direito,
Chapinha nas
poças de água,
Colhe as flores e
gosta delas e esquece-as.
Atira pedras aos
burros,
Rouba a fruta dos
pomares
E foge a chorar e
a gritar dos cães.
E, porque sabe
que elas não gostam
E que toda a
gente acha graça,
Corre atrás das
raparigas
Que vão em
ranchos pelas estradas
Com as bilhas às
cabeças
E levanta-lhes as
saias.
A mim ensinou-me
tudo.
Ensinou-me a
olhar para as coisas.
Aponta-me todas
as coisas que há nas flores.
Mostra-me como as
pedras são engraçadas
Quando a gente as
tem na mão
E olha devagar
para elas.
Diz-me muito mal
de Deus.
Diz que ele é um
velho estúpido e doente,
Sempre a escarrar
para o chão
E a dizer
indecências.
A Virgem Maria
leva as tardes da eternidade a fazer meia.
E o Espírito
Santo coça-se com o bico
E empoleira-se
nas cadeiras e suja-as.
Tudo no céu é
estúpido como a Igreja Católica.
Diz-me que Deus
não percebe nada
Das coisas que
criou -
"Se é que
ele as criou, do que duvido." -
"Ele diz por
exemplo, que os seres cantam a sua glória,
Mas os seres não
cantam nada.
Se cantassem
seriam cantores.
Os seres existem
e mais nada,
E por isso se
chamam seres."
E depois, cansado
de dizer mal de Deus,
O Menino Jesus
adormece nos meus braços
E eu levo-o ao
colo para casa.
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Ele mora comigo
na minha casa a meio do outeiro.
Ele é a Eterna
Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano
que é natural.
Ele é o divino
que sorri e que brinca.
E por isso é que
eu sei com toda a certeza
Que ele é o
Menino Jesus verdadeiro.
E a criança tão
humana que é divina
É esta minha
quotidiana vida de poeta,
E é por que ele
anda sempre comigo que eu sou poeta sempre.
E que o meu
mínimo olhar
Me enche de
sensação,
E o mais pequeno
som, seja do que for,
Parece falar
comigo.
A Criança Nova
que habita onde vivo
Dá-me uma mão a
mim
E outra a tudo
que existe
E assim vamos os
três pelo caminho que houver,
Saltando e
cantando e rindo
E gozando o nosso
segredo comum
Que é saber por
toda a parte
Que não há
mistério no mundo
E que tudo vale a
pena.
A Criança Eterna
acompanha-me sempre.
A direcção do meu
olhar é o seu dedo apontado.
O meu ouvido
atento alegremente a todos os sons
São as cócegas
que ele me faz, brincando, nas orelhas.
Damo-nos tão bem
um com o outro
Na companhia de
tudo
Que nunca
pensamos um no outro,
Mas vivemos
juntos e dois
Com um acordo
íntimo
Como a mão
direita e a esquerda.
Ao anoitecer
brincamos as cinco pedrinhas
No degrau da
porta de casa,
Graves como
convém a um deus e a um poeta,
E como se cada
pedra
Fosse todo o
universo
E fosse por isso
um grande perigo para ela
Deixá-la cair no
chão.
Depois eu
conto-lhe histórias das coisas só dos homens
E ele sorri
porque tudo é incrível.
Ri dos reis e dos
que não são reis,
E tem pena de
ouvir falar das guerras,
E dos comércios,
e dos navios
Que ficam fumo no
ar dos altos mares.
Porque ele sabe
que tudo isso falta àquela verdade
Que uma flor tem
ao florescer
E que anda com a
luz do Sol
A variar os
montes e os vales
E a fazer doer
aos olhos dos muros caiados.
Depois ele
adormece e eu deito-o.
Levo-o ao colo
para dentro de casa
E deito-o,
despindo-o lentamente
E como seguindo
um ritual muito limpo
E todo materno
até ele estar nu.
Ele dorme dentro
da minha alma
E às vezes acorda
de noite
E brinca com os
meus sonhos.
Vira uns de
pernas para o ar,
Põe uns em cima
dos outros
E bate palmas
sozinho
Sorrindo para o
meu sono.
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Quando eu morrer,
filhinho,
Seja eu a
criança, o mais pequeno.
Pega-me tu ao
colo
E leva-me para
dentro da tua casa.
Despe o meu ser
cansado e humano
E deita-me na tua
cama.
E conta-me
histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a
adormecer.
E dá-me sonhos
teus para eu brincar
Até que nasça
qualquer dia
Que tu sabes qual
é.
... ... ... ...
... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
Esta é a história
do meu Menino Jesus.
Por que razão que
se perceba
Não há-de ser ela
mais verdadeira
Que tudo quanto
os filósofos pensam
E tudo quanto as
religiões ensinam ?
Alberto Caeiro (Portugal)
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