Um poema como se fosse uma Via Sacra...
Guernica - Pablo Picasso
I
Entra pela janela
o anjo camponês;
com a terceira luz
na mão;
minucioso,
habituado
aos interiores de
cereal,
aos utensílios
que dormem na
fuligem;
os seus olhos
rurais
não compreendem bem
os símbolos
desta colheita:
hélices,
motores furiosos;
e estende mais o
braço; planta
no ar, como uma
árvore,
a chama do
candeeiro.
II
As outras duas
luzes
são lisas, ofuscantes;
lembram a cal, o
zinco branco
nas pedreiras;
ou nos umbrais
de cantaria
aparelhada; bruscamente;
a arder; há o mesmo
branco na lâmpada
do teto;
o mesmo zinco
nas máquinas que
voam
fabricando o
incêndio; e assim,
por toda a parte,
a mesma cal
mecânica
vibra os seus
cutelos.
III
Ao alto; à
esquerda;
onde aparece
a linha da
garganta,
a curva distendida
como
o gráfico dum
grito;
o som é impossível;
impede-o pelo menos
o animal fumegante;
com o peso das
patas, com os longos
músculos negros;
sem esquecer
o sal silencioso
no outro coração:
por cima dele;
inútil; a mão desta
mulher de joelhos
entre as pernas do
touro.
IV
Em baixo, contra o
chão
de tijolo queimado,
os fragmentos duma
estátua;
ou o construtor da
casa
já sem fio de
prumo,
barro, sestas
pobres? quem
tentou salvar o
dia,
o seu resíduo
de gente e poucos
bens? opor
à química da
guerra,
aos reagentes
dissolvendo
a construção, as
traves,
este gládio,
esta palavra
arcaica?
V
Mesa, madeira posta
próximo dos homens:
pelo corte
da plaina,
a lixa ríspida,
a cera sobre o
betume, os nós;
e dedos tacteando
as últimas
rugosidades;
morosamente; com o
amor
do carpinteiro ao
objeto
que nasceu
para viver na casa;
no sítio destinado
há muito;
como se fosse,
quase,
uma criança da
família.
VI
O pássaro; a sua
anatomia
rápida; forma cheia
de pressa,
que se condensa
apenas o bastante
para ser visível no
céu,
sem o ferir;
modelo doutros
voos: nuvens;
e vento leve,
folhas;
agora, atónito,
abre as asas
no deserto da mesa;
tenta gritar às
falsas aves
que a morte é
diferente:
cruzar o céu com a
suavidade
dum rumor e
sumir-se.
VII
Cavalo; reprodutor
de luz nos prados;
quando
respira, os
brônquios;
dois frémitos de
soro; exalam
essa névoa
que o primeiro sol
transforma
numa crina trémula
sobre pastos e
éguas; mas aqui
marcou-o o ferro
dos lavradores que
o anjo ignora;
e endureceu-o de
tal modo
que se entrega;
como as bestas
bíblicas;
ao tétano; ao
furor.
VIII
Outra mulher: o
susto
a entrar no
pesadelo;
oprime-a o ar; e
cada passo
é apenas peso:
seios
donde os mamilos
pendem,
gotas duras
de leite e medo;
quase pedras;
memória tropeçando
em árvores,
parentes,
num descampado
vagaroso;
e amor também:
espécie de peso que
produz
por dentro da
mulher
os mesmos passos
densos.
IX
Casas desidratadas
no alto forno; e
olhando-as,
momentos antes de
ruírem,
o anjo desolado
pensa: entre
detritos
sem nenhum cerne ou
água,
como anunciar
outra vez o milagre
das salas;
dos quartos;
crescendo cisco
a cisco, filho a
filho?
as máquinas
estranhas,
os motores com
sede, nem sequer
beberam o espírito
das minhas casas;
evaporaram-no
apenas.
X
O incêndio desce;
do canto superior
direito;
sobre os sótãos,
os degraus das
escadas
a oscilar;
hélices, vibrações,
percutem os alicerces;
e o fogo, veloz
agora, fende-os, desmorona
toda a arquitetura;
as paredes áridas
desabam
mas o seu desenho
sobrevive no ar;
sustém-no
a terceira mulher;
a última; com os braços
erguidos; com o
suor da estrela
tatuada na testa
Carlos de Oliveira (Portugal)
Um comentário:
Carlos Oliveira um poeta que muito admiro.
Abr.
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