21 de setembro de 2008

NAO CESSO DE ME CRIAR



Não cesso de me criar; sou o doador e a doação. Se meu pai vivesse, eu conheceria os meus direitos e os meus deveres; ele está morto e eu ignoro-os: não tenho direitos, pois o amor sacia-me; não tenho deveres, pois dou por amor. Um só mandato: agradar, tudo para fazer vista. Na nossa família, que dissipação de generosidade: meu avô faz-me viver e eu faço-lhe a felicidade; minha mãe dedica-se a todos. Quando penso nisso, hoje, só esta dedicação me parece verdadeira: mas nós tínhamos tendência para nos calarmos a esse respeito. Não interessa: a nossa vida é apenas uma série de cerimónias e esgotámos o tempo a prodigalizar-nos homenagens. Eu respeito os adultos com a condição de que me idolatrem; sou franco, aberto, doce como uma menina. Penso bem, inspiro confiança às pessoas: todos são bons, pois que todos estão contentes. Considero a sociedade uma rigorosa hierarquia de méritos e poderes. Os que ocupam o topo da escala dão tudo quanto possuem aos que se encontram abaixo. Não penso, no entanto, em situar-me no mais alto escalão: não ignoro que o reservam a pessoas severas e bem intencionadas que fazem reinar a ordem. Mantenho-me num pequeno poleiro marginal, não longe delas, e a minha radiação alastra de alto a baixo da escala. Em suma, faço todos os esforços para me afastar do poder secular: nem abaixo, nem acima, sim alhures. Neto de clerc*, sou, desde a infância, um clerc: tenho a unção dos príncipes da Igreja, uma jovialidade sacerdotal. Trato os inferiores como iguais: é uma piedosa mentira que lhes prego a fim de torná-los felizes e com a qual convém que sejam enganados até certo ponto. À minha empregada, ao carteiro, à minha cadela, falo com voz paciente e temperada. Neste mundo em ordem existem pobres. Existem também carneiros de cinco patas, irmãs siamesas, acidentes de caminhos de ferro: tais anomalias não são culpa de ninguém. Os bons pobres não sabem que a sua função é exercitar a nossa generosidade; são pobres envergonhados, passam rentes às paredes; saio a correr, passo-lhes rapidamente uma moeda de dois soldos e, acima de tudo, dou-lhes de presente um belo sorriso igualitário. Acho que têm um ar estúpido e não gosto de tocá-los, mas forço-me a fazê-lo: é uma provação; além disso, cumpre que gostem de mim; esse amor embelezar-lhes-á a vida. Sei que carecem do necessário e apraz-me ser-lhes o supérfluo. Aliás, qualquer que seja a sua miséria, jamais poderão sofrer tanto como o meu avô: quando era pequeno, acordava de madrugada e vestia-se no escuro; no Inverno, para se lavar, precisava de quebrar o gelo na bilha da água. Felizmente, as coisas depois melhoraram: meu avô crê no Progresso, eu também: o Progresso, esse longo e árduo caminho que leva até mim.


* Usado com o duplo sentido de letrado e clérigo


in As Palavras, Jean-Paul Sartre (Franca)


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