27 de março de 2014

POSSE


Nos compêndios escolares não se falava da pequena ilha
solitária e perdida nos mares do Sul.
Não passavam por lá os barcos dos brancos
e o povo seguia a sua própria lei
que no entanto não estava escrita em livro algum.
Homens e mulheres viviam nus e amavam-se sem complicações
e comiam peixes que pescavam em canoas feitas com troncos de árvores
e carne de animais caçados com setas certeiras.

Atletas e guerreiros dançavam ao som de búzios e tambores
e as bailadeiras ondeavam contorcidos ritmos lentos
na toada triste de instrumentos de uma só corda.
E tinham seus deuses, seus santos, seus sacerdotes, seus feiticeiros,
e moravam em cubatas cobertas com palmas das palmeiras.

Mas do outro lado da terra
um dia
senhores de cara grave assentaram-se à volta de uma mesa com mapas em frente,
            falando de guerras,
            de bases para aviões,
            de pontos estratégicos...

Então veio à baila a ilha solitária perdida nos mares do Sul...
Semanas depois um barco de ferro chegou e fundeou
nas águas tranquilas da baía...
E um escaler veio para terra com homens loiros vestidos de branco,
trazendo, entre outras coisas,
            uma bandeira para a primeira afirmação imperial,
            um chicote para o primeiro castigo,
            um barril de pólvora para o primeiro massacre
            e um outro de álcool para o primeiro comércio!


Jorge Barbosa (Cabo Verde)

2 comentários:

António Eduardo Lico disse...

Bela e dorida poesia.
Abraço e bom início de fim de semana.

cirandeira disse...

Esse poema-denúncia fala por todos os povos colonizados. Esse modus-operandi foi o mesmo empregado aqui no Brasil!
Tomei a liberdade de publicá-lo em
http://minimoajuste.blogspot.com.br

Kadandu