30 de novembro de 2009

TRILHOS I



1 - imbambas



I
Espuma o mar que o navio rasga
sob a réstia de sol que o aprofunda

borbota ferve o largo rasto e logo esmaia
como memórias breves que cintilam
nas primeiras estrelas do regresso

tudo se emaranha no fervilhar da espuma


Volto enfim
para encontrar o sol
que levo em mim




II
De há pouco, no cais de partida
o vermelho gasto de uma sombrinha
aconchegando acenos breves lentos tristes doces
que a poalha da chuva miúda esbateu num relevo de sonos,
perdura e dói com num retrato antigo


...meus pais, debaixo do vermelho gasto.


Volto, sim
que o sol espera por mim
e eles virão no mesmo rasto.


Apesar da noite que cai
o horizonte alarga
...é o peito que se abre retendo o afago
esta imensa e leve carga, esta imbamba de sonos
esta bagagem tão minha...


...que afinal se guarda naquela sombrinha


Navio Quanza
Julho/65




2 - D. Conceição com Semedo


Vinha de panos pintados
e era Conceição
com seu tabaco enrolado e dado riso
nos olhos azulados
de afeição
e de quanto preciso


Vinha de panos pintados
com seu filho Semedo
e a nossa meninice


Mas passou e disse
nos olhos desencontrados
que era ainda muito cedo
para o que pedisse


Vinha do quintal e da mulembeira

Vinha do sonho, mas inteira,
com Semedo, e era ainda a lavadeira
e a meninice


Barcelona 08/05




3 - Pinacoteca


À brisa do fim da tarde
vieram a casa meus amigos
e conversamos como xuaxalham fora, imperiais
as palmeiras
que da janela alta por onde a noite desce
sobre a baía calma,
plasmam verdes as palmas estriadas a nanquim
na aquarela diluída e breve, por assinar


Pintada a cinza e negro, rasgada na parede
uma dor silenciosa e crua impõe-se muda, dentro


Sente-se o grito dos gritos
... é a língua pontiaguda do cavalo trespassado


Sente-se a dor, uma dor
... um menino aparentemente adormecido
que a mãe sustém mas já não presta


Escapa-se num esgar da boca e dos olhos alevantados
esse grito sulcando céus, abre-se uma janela, irrompe um anjo
espantado com a luz pequena de um candeeiro - inútil?


Mas já não grita o guerreiro estraçalhado e os que se arrastam
trôpegos de cansaço e medo, braços caídos
as pernas pesadas de grossas, exaustos
ou os que parecem voar atrás do grito


Dentro ainda
soprando brasas das nossas queimadas,
inflamadas de grogue e bagaços o verbo solta-se,
a conversa explode em fogo, lavareda que desmaia e retoma
na noite súbita anuviada que o calor afaga macio,
quadro vivo de sonhos em perpétuo esboço


Tudo se mescla numa perspetiva cúbica


A garrafa de pernod e copo, violino e guitarra
a solidão de Sabartés


e as conversas, os risos e os gestos...


Falou-se a vários tons, encharcando uma tela
fantasmática de sombras e delírios, como quem pinta em febre, e
nas mãos apertadas da despedida,
assina




Fernando Glória Dias - Luanda 08/78

2 comentários:

paterhu disse...

O Fernando da Glória Dias, um dos meus poetas preferidos, poeta dos silêncios, afagador de palavras, de gavetas cheias de versos...vamos lá pôr isso tudo cá para fora...é obrigatório...que o Conselho de Ministros assim o decrete!(digo eu...)
Abraço e grato por teres publicado.
Mário Tendinha

NAMIBIANO FERREIRA disse...

Mário, dizes bem, um afagador de palavras.
Irei postar mais dos seus poemas, pelo menos os Trilhos, gostei e o Cores e Palavras é para o que gosto.
Kandandu