Se não estivesse morto (morri em Pequim a 13 de Junho de 1973) festejaria no próximo dia 25 de Março 81 anos. Há quem ache que Angola poderia ser hoje um país muito diferente se eu não tivesse morrido tão jovem, mesmo às portas da Revolução de Abril em Portugal, e das grandes mudanças que a mesma implicou para o meu país. Sinto-me lisonjeado com tais opiniões, mas acho-as exageradas. É verdade que um único homem pode em certas circunstâncias alterar a correnteza da História – basta pensar em Nelson Mandela, sem o qual o regime do apartheid talvez não se tivesse desmoronado de forma pacífica. Olhando para trás, porém, sou forçado a admitir que o mau génio que sempre me dominou teria arruinado nesse futuro imaginário, como arruinou no duro passado real, qualquer encontro meu com a Senhora História.
Não me parece provável que em 1974 tivesse conseguido unir os diferentes movimentos nacionalistas angolanos. Não eu, um dos primeiros militantes do MPLA que se atreveu a contestar a liderança de Agostinho Neto e ousou romper com o partido para se juntar aos homens de Holden Roberto. Isto antes de romper com todos, a murro e à cacetada, e ficar completamente só. Levei a minha propensão iconoclasta sempre muito a sério. Tão a sério que um dia, em Pequim, onde estava exilado, quebrei um busto de Mao em público. Os meus anfitriões chineses ao invés de me expulsarem, como eu pretendia, condenaram-me a uma espécie de prisão domiciliária, ao ostracismo mais feroz, à penúria. Morri e enterraram-me sem testemunhas no cemitério dos estrangeiros. Se tivesse resistido mais alguns meses poderia ter conseguido deixar Pequim e recomeçar uma vida nova em Paris ou em Lisboa, onde me aguardavam muitos amigos.
Cheguei sempre cedo demais. Nunca soube esperar. Até para morrer fui impaciente.
Resumindo: vivo não teria ajudado a evitar nem a guerra civil, nem o desastrado pesadelo totalitário que em poucos anos, sob o olhar perplexo do camarada Neto, arruinou Angola. Em contrapartida talvez me tivesse dedicado à poesia, aprofundando a meia dúzia de caminhos que sugeri em outros tantos versos ingénuos. É graças a esses versos que por excessiva indulgência da crítica, ou excessiva ignorância, muitos insistem em chamar-me poeta.
Nos anos 40 e 50 eu e mais alguns companheiros começámos a escrever poesia na intenção de despertar as massas. A poesia deveria servir, no nosso entender, para preparar o terreno para a insurreição nacionalista. E assim foi. Contrariando os cépticos, demonstrámos que a poesia pode mudar o mundo. Primeiro os versos, depois as balas. A seguir demos razão aos cínicos: mudar, mudámos, mas não para melhor. Acontece que, infelizmente os poemas que então produzimos estavam longe da excelência. Faltou-nos labor literário. Talvez com boa poesia pudéssemos ter obtido melhores resultados na política. Não deixei de acreditar no poder da poesia. Nem sequer na necessidade de levar a poesia ao poder. O problema (suspeito) foi a qualidade dessa poesia – e dos seus poetas. Não é possível cozinhar um bom funge com farinha ruim.
Se não tivesse morrido em 1973 estaria agora a confrontar-me – inclusive a murro e à cacetada, caso não me faltasse o fôlego, mas em todo o caso possuído pelo mesmo espírito iconoclasta – com todos quantos impedem a afirmação de um novo pensamento e de uma nova criatividade, capaz de iluminar consciências e de preparar terreno para outras insurreições, outras libertações. Vez por outra oiço alguém utilizar, a propósito do regime angolano, a expressão «pensamento totalitário», e rio-me às gargalhadas do alto da minha nuvem – eis aqui um belo oximoro. Não sei quanto tempo vai levar (o que no estado em que me encontro é indiferente) mas sei que mais tarde ou mais cedo a boa poesia acabará por se impor e triunfar.
Crónica publicada na edição nº 78 (Março) da LER. Ilustração de Pedro Vieira.
© publicado pela Ler às 11:32 aqui: http://ler.blogs.sapo.pt/338179.html
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