22 de abril de 2014

A SECÇÃO DOS CONGELADOS


Truncadas, indefinidas, passam
na memória como filmes mudos
pequenas histórias de amor
carnal. Os grandes caudais da noite
sempre desaguam na tarde salobra
e rasa: Janeiro amolece a tinta
das paredes, levamos à rua uma cara
mais fechada, e depois, na secção
dos congelados, não sabemos distinguir
o que sentimos além do frio que represa
as coisas todas: caminhamos sós
num privado bosque, convocamos
sombras que foram perdendo o nome,
sinais que não transportam já
um sentido automático de desejo
ou sofrimento. E contudo, à revelia
das certezas que não quiséramos ter,
acabamos sempre por tornar
às mesmas ruas, à noite insone
e imensa, onde nos dói descobrir,
na companhia dos outros,
o quanto nos reclama a solidão.


Rui Pires Cabral  (Portugal)

3 comentários:

Graça Pires disse...

Um belo poema de um poeta que não faz parte da minha estante de poesia, mas vou estar atenta a isso.
Obriga pela partilha.
Abraço.

NAMIBIANO FERREIRA disse...

Uma muito recente descoberta, mas estou a gostar.
Abraço.

António Eduardo Lico disse...

É sempre bom reler a poesia de Rui Pires Cabral.
Abraço.