O Conde e o Passarinho
Acontece que o Conde Matarazzo estava passeando pelo parque. O Conde
Matarazzo é um Conde muito velho, que tem muitas fábricas. Tem também muitas
honras. Uma delas consiste em uma preciosa medalhinha de ouro que o Conde
exibia à lapela, amarrada a uma fitinha. Era uma condecoração (sem trocadilho).
Ora, aconteceu também um passarinho. No parque havia um passarinho. E esses
dois personagens - o Conde e o passarinho - foram os únicos da singular
história narrada pelo Diário de São Paulo. Devo confessar preliminarmente que
entre um Conde e um passarinho, prefiro um passarinho. Torço pelo passarinho.
Não é por nada. Nem sei mesmo explicar essa preferência. Afinal de contas, um
passarinho canta e voa. O Conde não sabe gorjear nem voar. O Conde gorjeia com
apitos de usinas, barulheiras enormes, de fábricas espalhadas pelo Brasil,
vozes dos operários, dos teares, das máquinas de aço e de carne que trabalham
para o Conde. O Conde gorjeia com o dinheiro que entra e sai de seus cofres, o
Conde é um industrial, e o Conde é Conde porque é industrial. O passarinho não
é industrial, não é Conde, não tem fábricas. Tem um ninho, sabe cantar, sabe
voar, é apenas um passarinho e isso é gentil, ser um passarinho. Eu quisera ser
um passarinho. Não, um passarinho, não. Uma ave maior, mais triste. Eu quisera
ser um urubu. Entretanto, eu não quisera ser Conde. A minha vida sempre foi
orientada pelo fato de eu não pretender ser Conde. Não amo os Condes. Também
não amo os industriais. Que eu amo? Pierina e pouco mais. Pierina e a vida,
duas coisas que se confundem hoje, e amanhã mais se confundirão na morte.
Entendo por vida o fato de um homem viver fumando nos três primeiros bancos e
falando ao motorneiro. Ainda ontem ou anteontem assim escrevi. O essencial é
falar ao motorneiro. O povo deve falar ao motorneiro. Se o motorneiro se fizer
de surdo, o povo deve puxar a aba do paletó do motorneiro. Em geral, nessas
circunstâncias, o motorneiro dá um coice. Então o povo deve agarrar o
motorneiro, apoderar-se da manivela, colocar o bonde a nove pontos, cortar o
motorneiro em pedacinhos e comê-lo com farofa. Quando eu era calouro de
Direito, aconteceu que uma turma de calouros assaltou um bonde. Foi um assalto
imortal. Marcamos no relógio quanto nos deu na cabeça, e declaramos que a
passagem era grátis. O motorneiro e o condutor perderam, rápida e
violentamente, o exercício de suas funções. Perderam também os bonés. Os bonés
eram os símbolos do poder. Desde aquele momento perdi o respeito por todos os
motorneiros e condutores. Aquilo foi apenas uma boa molecagem. Paciência. A
vida também é uma imensa molecagem. Molecagem podre. Quando poderás ser um
urubu, meu velho Rubem? Mas voltemos ao Conde e ao passarinho. Ora, o Conde
estava passeando e veio o passarinho. O Conde desejou ser que nem o seu patrício,
o outro Francisco, o Francisco da Umbria, para conversar com o passarinho. Mas
não era aquele, o São Francisco de Assis, era apenas o Conde Francisco
Matarazzo. Porém, ficou encantado ao reparar que o passarinho voava para ele. O
Conde ergueu as mãos, feito uma criança, feito um santo. Mas não eram mãos de
criança nem de santo, eram mãos de Conde industrial. O passarinho desviou e se
dirigiu firme para o peito do Conde. Ia bicar seu coração? Não, ele não era um
bicho grande de bico forte, não era, por exemplo, um urubu, era apenas um
passarinho. Bicou a fitinha, puxou, saiu voando com a fitinha e com a medalha.
O Conde ficou muito aborrecido, achou muita graça. Ora essa! Que passarinho
mais esquisito!Isso foi o que o Diário de São Paulo contou. O passarinho, a
esta hora assim, está voando, com a medalhinha no bico. Em que peito a
colocareis, irmão passarinho? Voai, voai, voai por entre as chaminés do Conde,
varando as fábricas do Conde, sobre as máquinas de carne que trabalham.
(Retirado do blog de Cirandeira.)
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