Deixaram nas ilhas
um legado
de híbridas
palavras e tétricas plantações
engenhos
enferrujados proas sem alento
nomes sonoros
aristocráticos
e a lenda de um
naufrágio nas Sete Pedras
Aqui aportaram
vindos do Norte
por mandato ou
acaso ao serviço do seu rei:
navegadores e
piratas
negreiros ladrões
contrabandistas
simples homens
rebeldes proscritos
também
e infantes judeus
tão tenros que
feneceram
como espigas
queimadas
Nas naus trouxeram
bússolas
quinquilharias sementes
plantas
experimentais amarguras atrozes
um padrão de pedra
pálido como o trigo
e outras cargas sem
sonhos nem raízes
porque toda a ilha
era um porto e uma estrada sem regresso
todas as mãos eram
negras forquilhas e enxadas
E nas roças ficaram
pegadas vivas
como cicatrizes —
cada cafeeiro respira agora um
escravo morto.
E nas ilhas ficaram
incisivas
arrogantes estátuas nas esquinas
cento e tal igrejas
e capelas
para mil
quilómetros quadrados
e o insurrecto
sincretismo dos paços natalícios.
E ficou a cadência
palaciana da ússua
o aroma do alho e
do zêtê d'óchi
no tempi e na ubaga
téla
e no calulu o louro
misturado ao óleo de palma
e o perfume do
alecrim
e do mlajincon nos
quintais dos luchans
E aos relógios
insulares se fundiram
os espectros —
ferramentas do império
numa estrutura de
ambíguas claridades
e seculares
condimentos
santos padroeiros e
fortalezas derrubadas
vinhos baratos e
auroras partilhadas
Às vezes penso em
suas lívidas ossadas
seus cabelos podres
na orla do mar
Aqui, neste fragmento
de África
onde, virado para o
Sul,
um verbo amanhece
alto
como uma dolorosa
bandeira.
Conceição Lima (S. Tomé e Príncipe)
De O Útero da Casa (2004)