Arte Poética IV
Fernando Pessoa dizia: «Aconteceu-me um poema.» A minha maneira de escrever
fundamental é muito próxima deste «acontecer». O poema aparece feito, emerge,
dado (ou como se fosse dado). Como um ditado que escuto e noto.
É possível que esta maneira esteja em parte ligada ao facto de, na minha
infância, muito antes de eu saber ler, me terem ensinado a decorar poemas.
Encontrei a poesia antes de saber que havia literatura. Pensava que os poemas
não eram escritos por ninguém, que existiam em si mesmos, por si mesmos, que
eram como que um elemento do natural, que estavam suspensos, imanentes. E que
bastaria estar muito quieta, calada e atenta para os ouvir.
Desse encontro inicial ficou em mim a noção de que fazer versos é estar
atento e de que o poeta é um escutador. É difícil descrever o fazer de um
poema. Há sempre uma parte que não consigo distinguir, uma parte que se passa
na zona onde eu não vejo.
Sei que o poema aparece, emerge e é escutado num equilíbrio especial da atenção,
numa tensão especial da concentração. O meu esforço é para conseguir ouvir o
«poema todo» e não apenas um fragmento. Para ouvir o «poema todo» é necessário
que a atenção não se quebre ou atenue e que eu própria não intervenha. É
preciso que eu deixe o poema dizer-se. Sei que quando o poema se quebra, como
um fio no ar, o meu trabalho, a minha aplicação não conseguem continuá-lo.
Como, onde e por quem é feito esse poema que acontece, que aparece como já
feito? A esse «como, onde e quem» os antigos chamavam Musa. É possível dar-lhe
outros nomes e alguns lhe chamarão o subconsciente, um subconsciente acumulado,
enrolado sobre si próprio como um filme que de repente, movido por qualquer
estimulo, se projecta na consciência como num écran. Por mim, é-me difícil
nomear aquilo que não distingo bem. É-me difícil, talvez impossível, distinguir
se o poema é feito por mim, em zonas sonâmbulas de mim, ou se é feito em mim
por aquilo que em mim se inscreve. Mas sei que o nascer do poema só é possível
a partir daquela forma de ser, estar e viver que me torna sensível — como a
película de um filme — ao ser e ao aparecer das coisas. E a partir de uma
obstinada paixão por esse ser e esse aparecer.
Deixar que o poema se diga por si, sem intervenção minha (ou sem intervenção
que eu veja), como quem segue um ditado (que ora é mais nitido, ora mais
confuso), é a minha maneira de escrever.
Assim algumas vezes o poema aparece desarrumado, desordenado, numa sucessão
incoerente de versos e imagens. Então faço uma espécie de montagem em que
geralmente mudo não os versos mas a sua ordem. Mas esta intervenção não é
propriamente «inter-vir» pois só toco no poema depois de ele se ter dito até ao
fim. Se toco a meio o poema nas minhas mãos desagrega-se. O poema «Crepúsculo
dos Deuses» (Geografia) é um exemplo desta maneira de escrever. É uma montagem
feita com um texto caótico que arrumei: ordenei os versos e acrescentei no
final uma citação de um texto histórico sobre Juliano, o Apóstata.
Algumas vezes surge não um poema mas um desejo de escrever, um «estado de
escrita». Há uma aguda sensação de plasticidade e um vazio, como num palco
antes de entrar a bailarina. E há uma espécie de jogo com o desconhecido, o
«in-dito», a possibilidade. O branco do papel torna-se hipnótico. Exemplo dessa
maneira de escrever, texto que diz esta maneira de escrever, é o poema de
Coral:
Que poema, de entre todos os poemas,
Página em branco?
Outra ainda é a maneira que surgiu quando escrevi O Cristo Cigano: havia
uma história, um tema, anterior ao poema. Sobre esse tema escrevi vários poemas
soltos que depois organizei num só poema longo.
E por três vezes me aconteceu uma outra maneira de escrever: de textos que
eu escrevera em prosa surgiram poemas. Assim o poema «Fernando Pessoa» apareceu
repentinamente depois de eu ter acabado de escrever uma conferência sobre
Fernando Pessoa. E o poema «Maria Helena Vieira da Silva ou O Itinerário
Inelutável» emergiu de um artigo sobre a obra desta pintora. E enquanto escrevi
este texto para a Crítica apareceu um poema que cito por ser a forma mais
concreta de dar a resposta que me é pedida:
Aqui me sentei quieta
Com as mãos sobre os joelhos
Quieta muda secreta
Passiva como os espelhos
Musa ensina-me o canto
Imanente e latente
Eu quero ouvir devagar
O teu súbito falar
Que me foge de repente
Durante vários dias disse a mim própria: «tenho de responder a Crítica».
Sabia que ia escrever e sobre que tema ia escrever. Escrevi pouco a pouco, com
muitas interrupções, metade escrito num caderno, metade num bloco, riscando e
emendando para trás e para a frente, num artesanato muito laborioso, perdida em
pausas e descontinuidades. E através das pausas o poema surgiu, passou através
da prosa, apareceu na folha direita do caderno que estava vazia.
Ninguém me tinha pedido um poema, eu própria não o tinha pedido a mim
própria e não sabia que o ia escrever. Direi que o poema falou quando eu me
calei e se escreveu quando parei de escrever. Ao tentar escrever um texto em
prosa sobre a minha maneira de escrever «invoquei» essa maneira de escrever
para a «ver» e assim a poder descrever. Mas, quando «vi», aquilo que me
apareceu foi um poema.
Sophia de Mello Breyner Andresen (Portugal)
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