23 de março de 2012

IDENTIDADE





Preciso ser um outro
para ser eu mesmo

Sou grão de rocha
Sou o vento que a desgasta

Sou pólen sem insecto

Sou areia sustentando
o sexo das árvores

Existo onde me desconheço
aguardando pelo meu passado
ansiando a esperança do futuro

No mundo que combato morro
no mundo por que luto nasço

Mia Couto (Moçambique)

22 de março de 2012

RUY DUARTE DE CARVALHO - POEMA

 

A terra que te ofereço





I

quando,

ansiosa,

pela primeira vez

pisares

a terra que te ofereço,

estarei presente

para auscultar,

no ar,

a viração suave do encontro

da lua que transportas

com a sólida

e materna nudez do horizonte.



quando,

ansioso,

te vir a caminhar

no chão da minha oferta,

coloco,

brandamente,

em tuas mãos,

uma quinda de mel

colhido em tardes quentes

de irreversível

votação ao sul.



II

trago

para ti

em cada mão

aberta,

os frutos mais recentes

deste outono

que te ofereço verde:

o mês mais farto de óleos

e ternura avulsa.

e dou-te a mão

para que possas

ver,

mais confiante,

a vastidão

sonora

de uma aurora

elaborada em espera

e reflectida

na rápida torrente

que se mede em cor.



III

num mapa

desdobrado para ti,

eu marcarei

as rotas

que sei já

e quero dar-te:

o deslizar de um gesto,

a esteira fumegante

de um archote

aceso,

um tracejar

vermelho

de pés nus,

um corredor aberto

na savana,

um navegável mar de plasma

quente.



Ruy Duarte de Carvalho (Angola)

21 de março de 2012

DIA MUNDIAL DA POESIA - 21/03/2012



Para além da Poesia


Lá no horizonte
o fogo
e as silhuetas dos embondeiros
de braços erguidos
No ar o cheiro verde das palmeiras queimadas


Poesia africana


Na estrada
A fila de carregadores bailundos
gemendo sob o peso da crueira
No quarto
a mulatinha de olhos meigos
retocando o rosto com rouge e pó-de –arrroz
A mulher debaixo dos panos fartos remexe as ancas
Na cama o homem insone pensando
em comprar garfos e facas para comer à mesa


No céu o reflexo do fogo
e as silhuetas dos homens negros batucando
de braços erguidos
No ar a melodia quente das marinbas


Poesia africana


E na estrada os carregadores
no quarto a mulatinha
na cama o homem das marinbas


os braseiros consumindo
consumindo
a terra quente dos horizontes em fogo.


Agostinho Neto (Angola)

5 de março de 2012

POEMA DE AIRES DE ALMEIDA SANTOS (ANGOLA)



Estória que o vento trouxe
ouves?
não ouves
o que o vento, lá fora,
está a contar
às buganvílias?
há mais de uma hora
que o estou a escutar.

ouviste
o que disse agora?
e que triste
que ele está...

diz ele
que o manuel
há quase dois dias
que anda no mar;
e a ximinha,
coitada,
desolada,
sentada
na praia
a chorar
e a rezar
e a esperar...

quando ele largou
no "bom dia"
o mar era um lago
e parecia
de azeite...
mas, depois
cresceu,
enraiveceu
numa calema tremenda
e toda a praia da tenda
tremeu.

partiram-se as armações,
viraram-se as embarcações
e toda a gente se escondeu,
assustada

só a ximinha,
coitada,
ficou sentada
na praia
a chorar
e a rezar
e a esperar...

hoje de manhã
já a calema amainara
e não se vira ainda
o "bom dia"
a entrar
pra fundear
na baía...

Aires de Almeida Santos (Angola)