18 de dezembro de 2011

SODADE - CESÁRIA ÉVORA




SODADE!!!


Na BBC:


Singer Cesaria Evora dies at the age of 70

Cesaria EvoraCesaria Evora was discovered by a French music executive


Singer Cesaria Evora, dubbed the "Barefoot Diva" for often performing without shoes, has died in her native Cape Verde at the age of 70.
The musican, forced to retire earlier this year due to ill-health, began her career singing in the bars of Mindelo in the West African island nation.
Evora did not begin her recording career until 1988, and won a Grammy Award in 2004 for her album Voz D'Amor.
She was famed for singing songs of longing with her rich contralto vocals.
Her sultry voice was often compared to blues star Billie Holliday
Her fourth album, Miss Perfumado, was her breakthrough hit in 1992. It sold more than 300,000 copies worldwide, and resulted in a number of tours. She released 10 albums in all.
Evora had a penchant for alcohol and cigarettes, and in later life her health began to decline. She suffered a stroke while on tour in Australia in 2008 and later underwent open heart surgery.

"I infinitely regret having to stop because of illness, I would have wanted to give more pleasure to those who have followed me for so long."
In September, she spoke of her sadness at having to retire, saying: "I have no strength, no energy. I want you to say to my fans: forgive me, but now I need to rest.
Evora was considered one of the world's greatest exponents of Morna, a form of blues considered the national music of the Cape Verde islands, a former Portuguese colony which gained independence in 1975.
The music is a testament to the country's history, including the slave trade and its physical remoteness in the Atlantic Ocean, hundreds of kilometres off Africa's west coast.
Two days of national mourning has been declared in the small island nation, with President Jorge Carlos Fonseca calling her "one of the major cultural references of Cape Verde".
Prime Minister Jose Maria Neves paid tribute to her "invaluable contribution to the greatness of our nation and our pride".





7 de dezembro de 2011

ESPECIAL LITERATURA - UANHENGA XITU


«O escritor que é a Voz do Povo»
Fonte: Carlos Gonçalves - AD

Especial Literatura. Uanhenga Xitu nasceu Agostinho André Mendes de Carvalho em Calomboloca, Icolo e Bengo, a 29 de Agosto de 1924. Em 1959 foi preso no quadro do chamado “Processo dos 50” e enviado para o Campo de Concentração do Tarrafal, onde permaneceu de 1962 a 1974.

Por força da sua actividade política, este Enfermeiro de profissão, que estudou mais tarde Ciências Políticas, foi Governador de Luanda, Ministro da Saúde, Embaixador na Alemanha e Deputado à Assembleia Nacional, onde se mantém na actualidade.


Foi na cadeia, por influência de amigos, com os também escritores e poetas António Jacinto e António Cardoso, que Mendes de Carvalho começa a escrever e cria alguns dos mais emblemáticos personagens da história da nossa Literatura, como Kahitu e Mestre Tamoda.


Dessa época lamenta a perda de textos importantes:
- «Eu e os meus companheiros, pela vigilância apertada e brutalidade dos guardas e de outras entidades prisionais, vimos confiscados, além da correspondência familiar e documentos, trabalhos literários de grande valor que nunca mais recuperámos»


Mendes de Carvalho falou perante uma plateia emprenhada de juventude na União dos Escritores Angolanos (UEA), cinco dias antes de completar 81 anos de vida, ladeado por dois grandes amigos e companheiros de longa data: Pepetela e Ndunduma. Na mesa também se encontrava o Secretário-Geral da UEA Botelho de Vasconcelos.


Uanhenga Xitu tem publicado: Meu Discurso (1974); Mestre Tamoda (1974); Bola com Feitiço (1974); Manana (1974); Vozes na Sanzala-Kahitu (1976); Os Sobreviventes da Máquina Colonial Depõem (1980); Os Discursos de Mestre Tamoda (1984); O Ministro (1989); Cultos Especiais (1997); Os Sobreviventes da Máquina Colonial Depõem (reedição 2002); O Ministro (reedição 2005).


‘Os Discursos de Mestre Tamoda’ será a sua obra mais referenciada e com mais edições a par de ‘O Ministro’. O crítico literário Luís Kandjimbo escreveu na sua ‘Breve História da ficção narrativa Angolana’ nos últimos 50 anos que:
- «Tamoda, simbolizando o mimetismo cabotino, é uma personagem típica do mundo que, através da exibição de maneirismos, expõe hilariantemente o uso da língua portuguesa perante uma audiência de jovens e crianças, transformando-se em modelo, no que diz respeito ao emprego e manipulação de vocabulários portugueses (...).»
Na qualidade de escritor com envolvimento directo na actividade politica, pois é deputado à Assembleia Nacional, na sua bibliografia destacam-se ‘O Ministro’ e ‘Cultos Especiais’, duas obras consagradas à crítica social, ao culto da personalidade e a outros comportamentos dos políticos.


Sobre isso, U. Xitu contou uma história que envolveu o livro ‘O Ministro’:
«É uma obra que custou a sair, porque alguns Ministros insultaram-me, porque chamei-lhes gatunos, ‘camanguistas’ e foram queixar-se até ao Agostinho Neto. Um dia ele chamou-me. Parece que foi lá no Bureau Político que eles disseram que eu estava a perturbá-los. “Mas como é que os Senhores sabem que é convosco?”, perguntou Agostinho. Neto. Mandou-me chamar e conversámos:
- Isso é um poema, pode não estar de acordo com algumas pessoas, mas é um poema.
– Então como é que estás a escrever?
- Estou a escrever. Também quero ser poeta, mas ainda não sou.
- Mas está a começar assim já a matar, a queimar…
- Não. Isso é uma forma de ser. Não mata nem queima ninguém. É o que se passa, é o que se vê, é o que se nota. Então o que é que os poetas fazem? Vê uma cobra, uma abelha e começa a fazer conjecturas, relacionamento…
Pediu o livro, leu, leu e disse.
- Está bem, mas por enquanto é melhor ainda escrever coisas que não prestam.


E a polémica perdura. Recriando a criação, confundindo-se com a realidade e às vezes a realidade imita a ficção. Será poeta de kimbundo aquele que escreve em kimbundo? Uanhenga Xitu diz que não.
-«Independentemente de ser kimbundo e de o falar bem, até já experimentei na cadeia escrever em kimbundo, mas habituado ao português, quando li achei que não estava bom e rasguei.
Eu posso ser um poeta de kikongo, posso escrever em kikongo, depende da intenção que eu tenha. Posso ser um poeta de umbundo, muhila.
Eu escolhi esta por mero acaso. Como pode ver, algumas das palavras que aí estão, como mabalababa, kingalo, mingalo, milonga, estão lá por acaso, não houve nenhuma intenção.
Só não queria escrever esse “pueta” (poeta), com os “us” que terminam em kimbundo, que são sempre abertos. Raramente encontra escritos com “ó”, porque já estamos a aportuguesar, mas no kimbundo que eu aprendi, as terminações são sempre com “u” e pensei, se fechasse o “poeta”, era essa a minha intenção, ficaria “pueta”. Se fosse ‘poeta’ com “o”, eu não seria diferente dos outros, por isso eu queria ser ‘poeta’ com “u”.»


Outra das grandes curiosidades que suscita é a origem do seu nome, revelada apenas aos poucos que privam com ele. Diz que Uanhenga Xitu significa “o poder odiado”.
- «Isto posto em palavras simples, Uanhenga é pendurar a carne no pescoço (o transportar da caça por dois carregadores, a peça amarrada num pau sobre o ombro de dois caçadores). Xitu é precisamente carne. Na sanzala diz-se: “uanhega xitu ku mu nja u mundo”, o que significa “ele levou a carne e passa pela cidade fora, ninguém gosta deste homem, porque ele vai comer sozinho”. Isso generalizou-se entre quase todos os sentidos da vida.


O Agostinho Neto dizia que até na casa de banho os gajos espreitavam se eu estivesse lá. “Ka n’bambe ku muxima ka kuata mbambi”, é o kambrintiti, um pássaro muito pequeno que vai muito longe, mas vai cheio de medo. Significa que o homem que tem o poder, está sempre cheio de medo, se tem dinheiro está cheio de medo, se tem o poder militar está cheio de medo.
O meu nome foi-me dado pelo falecido Uanhenga Xitu Messene Kaíma. De facto, só muito mais tarde é que comecei a compreender a razão do nome. Nós temos que ter sempre guarda-costas. Não sei como é que vamos ficar um dia que nos tirem o lugar.»


Uma preocupação grande para os angolanos é o seguimento do político. Para os leitores apaixonados é a sucessão literária. Será que essa sucessão pode ocorrer dentro do seu seio familiar? Dos seus onze filhos adultos (Luísa, Divua, Tilu, Margarida, Miguel, Adriano, Tino, Pakas, Miau, Ana Bela e Babaia), não se vislumbra por enquanto essa tendência, ao contrário de Uanhenga Xitu que seguiu as pegadas dentro do seio familiar. Ele conta que os seus antepassados, apesar de analfabetos, eram grandes políticos
- «Quatro irmãos do meu pai foram desterrados para S. Tomé na ‘maka’ de 1922. A grande revolta de Catete passou-se num grande embondeiro do meu pai. Vieram gentes de todas as sanzalas que queriam matar o José Bernardo.
Para Forte Ruçada foram uns dez tios. Foi o pai do Wadijimbi (Miguel de Carvalho, actual Vice-ministro da Comunicação Social) e o embondeiro foi cavado até a raíz se tornar pó. Havia ali uma grande sombra que servia de tribuna e, em 1922, passa o Zé Bernardo de Calomboloca até Cassoneca, e no regresso ninguém quer mais trabalhar o algodão e começa uma confusão, unas até a querer degolar o homem já ali.


Portanto, políticos eram uma data deles, mas tenho uns filhos que só respondem à política, não são políticos, têm medo. Viram o pai passar quase 12 anos na cadeia, parece que ficaram com um medo terrível. Às vezes quero sacudi-los e não consigo.
Se tenho poetas na família? Os avós do Wadijimbi são grandes cantores. A minha tia Margarida era quase a Amália Rodrigues. Infelizmente não gravei nada. Às vezes cometemos cada erro…mas existiam muitos poetas que declamavam (em forma de jogral).
Os caçadores conhecem a retórica e vão em parada e resposta. Quando falo em analfabetos, quero dizer que são analfabetos em português, mas são catedráticos na sua língua natal.


Hoje estamos a precisar deles. Quero dizer que quem está mudo hoje somos nós. Agora o Governo pede-nos para aprender a língua nacional... onde?! Portanto, eram analfabetos em português porque não sabiam o alfabeto, mas eram kimbanguistas, juízes, cabocos (que eram os grandes oradores), sobretudo para os casamentos, alembamentos, funerais e pedidos de casamento.Hoje, os únicos que ainda mantêm essa tradição, são os kikongos ou bakongos.»
Uanhenga Xitu, nascido Agostinho André Mendes de Carvalho, uma das mais importantes bibliotecas e fontes de sabedoria tradicional angolana viva, falante e andante, destapa para nós alguns dos aspectos mais importantes da sua obra literária, da sua vivência e história pessoal.

29 de novembro de 2011

CHIMAMANDA NGOZI ADICHIE - HALF OF A YELLOW SUN




De momento leio "Half of a Yellow Sun"  que nao sei se existe traducao em portugues. Se existir talvez se chame "Metade de um Sol Amarelo" ou, simplesmente, "Meio Sol Amarelo". 
Um livro sobre a guerra do Biafra, no final dos anos 60 do século passado. A escritora, Chimamanda Ngozi Adichie, para além de bela é uma jovem mulher cheia de talento e de uma maturidade que só se alcanca ao fim de muitos anos de vida. Aconselho a leitura desta escritora nigeriana. Junto um vídeo (legendado em portugues) de uma palestra dada pela escritora: "O perigo de uma única história".






7 de outubro de 2011

O Verbo For




Vestibular de verdade era no meu tempo. Já estou chegando, ou já cheguei, à altura da vida em que tudo de bom era no meu tempo; meu e dos outros coroas. Acho inadmissível e mesmo chocante (no sentido antigo) um coroa não ser reacionário. Somos uma força histórica de grande valor. Se não agíssemos com o vigor necessário — evidentemente o condizente com a nossa condição provecta —, tudo sairia fora de controle, mais do que já está. O vestibular, é claro, jamais voltará ao que era outrora e talvez até desapareça, mas julgo necessário falar do antigo às novas gerações e lembrá-lo às minhas coevas (ao dicionário outra vez; domingo, dia de exercício).

O vestibular de Direito a que me submeti, na velha Faculdade de Direito da Bahia, tinha só quatro matérias: português, latim, francês ou inglês e sociologia, sendo que esta não constava dos currículos do curso secundário e a gente tinha que se virar por fora. Nada de cruzinhas, múltipla escolha ou matérias que não interessassem diretamente à carreira. Tudo escrito tão ruybarbosianamente quanto possível, com citações decoradas, preferivelmente. Os textos em latim eram As Catilinárias ou a Eneida, dos quais até hoje sei o comecinho.

Havia provas escritas e orais. A escrita já dava nervosismo, da oral muitos nunca se recuperaram inteiramente, pela vida afora. Tirava-se o ponto (sorteava-se o assunto) e partia-se para o martírio, insuperável por qualquer esporte radical desta juventude de hoje. A oral de latim era particularmente espetacular, porque se juntava uma multidão, para assistir à performance do saudoso mestre de Direito Romano Evandro Baltazar de Silveira. Franzino, sempre de colete e olhar vulpino (dicionário, dicionário), o mestre não perdoava.

— Traduza aí quousque tandem, Catilina, patientia nostra — dizia ele ao entanguido vestibulando.

— "Catilina, quanta paciência tens?" — retrucava o infeliz.

Era o bastante para o mestre se levantar, pôr as mãos sobre o estômago, olhar para a platéia como quem pede solidariedade e dar uma carreirinha em direção à porta da sala.

— Ai, minha barriga! — exclamava ele. — Deus, oh Deus, que fiz eu para ouvir tamanha asnice? Que pecados cometi, que ofensas Vos dirigi? Salvai essa alma de alimária. Senhor meu Pai!

Pode-se imaginar o resto do exame. Um amigo meu, que por sinal passou, chegou a enfiar, sem sentir, as unhas nas palmas das mãos, quando o mestre sentiu duas dores de barriga seguidas, na sua prova oral. Comigo, a coisa foi um pouco melhor, eu falava um latinzinho e ele me deu seis, nota do mais alto coturno em seu elenco.

O maior público das provas orais era o que já tinha ouvido falar alguma coisa do candidato e vinha vê-lo "dar um show". Eu dei show de português e inglês. O de português até que foi moleza, em certo sentido. O professor José Lima, de pé e tomando um cafezinho, me dirigiu as seguintes palavras aladas:

— Dou-lhe dez, se o senhor me disser qual é o sujeito da primeira oração do Hino Nacional!

— As margens plácidas — respondi instantaneamente e o mestre quase deixa cair a xícara.

— Por que não é indeterminado, "ouviram, etc."?

— Porque o "as" de "as margens plácidas" não é craseado. Quem ouviu foram as margens plácidas. É uma anástrofe, entre as muitas que existem no hino. "Nem teme quem te adora a própria morte": sujeito: "quem te adora." Se pusermos na ordem direta...

— Chega! — berrou ele. — Dez! Vá para a glória! A Bahia será sempre a Bahia!

Quis o irônico destino, uns anos mais tarde, que eu fosse professor da Escola de Administração da Universidade Federal da Bahia e me designassem para a banca de português, com prova oral e tudo. Eu tinha fama de professor carrasco, que até hoje considero injustíssima, e ficava muito incomodado com aqueles rapazes e moças pálidos e trêmulos diante de mim. Uma bela vez, chegou um sem o menor sinal de nervosismo, muito elegante, paletó, gravata e abotoaduras vistosas. A prova oral era bestíssima. Mandava-se o candidato ler umas dez linhas em voz alta (sim, porque alguns não sabiam ler) e depois se perguntava o que queria dizer uma palavra trivial ou outra, qual era o plural de outra e assim por diante. Esse mal sabia ler, mas não perdia a pose. Não acertou a responder nada. Então, eu, carrasco fictício, peguei no texto uma frase em que a palavra "for" tanto podia ser do verbo "ser" quanto do verbo "ir". Pronto, pensei. Se ele distinguir qual é o verbo, considero-o um gênio, dou quatro, ele passa e seja o que Deus quiser.

— Esse "for" aí, que verbo é esse?

Ele considerou a frase longamente, como se eu estivesse pedindo que resolvesse a quadratura do círculo, depois ajeitou as abotoaduras e me encarou sorridente.

— Verbo for.

— Verbo o quê?

— Verbo for.

— Conjugue aí o presente do indicativo desse verbo.

— Eu fonho, tu fões, ele fõe - recitou ele, impávido. — Nós fomos, vós fondes, eles fõem.

Não, dessa vez ele não passou. Mas, se perseverou, deve ter acabado passando e hoje há de estar num posto qualquer do Ministério da Administração ou na equipe econômica, ou ainda aposentado como marajá, ou as três coisas. Vestibular, no meu tempo, era muito mais divertido do que hoje e, nos dias que correm, devidamente diplomado, ele deve estar fondo para quebrar. Fões tu? Com quase toda a certeza, não. Eu tampouco fonho. Mas ele fõe.

João Ubaldo Ribeiro (Brasil)


Esta crônica foi publicada no jornal "O Globo" (e em outros jornais) na edição de domingo, 13 de setembro de 1998 e integra o livro "O Conselheiro Come", Ed Nova Fronteira - Rio de Janeiro, 2000, pág. 20.





4 de outubro de 2011

ODE A GOIABA


Goiabas
surgindo como um rio amarelo
o perfume delas
rico de sínteses
das madrugadas encerradas
na penugem dos Katetes.


E o sol também
o sol camarada e operário
doirando a cabeça das árvores
quando os montes além
fecundam as ventanias
no sangue maternal das tardes.


Tudo isso é pouco p'ra caber numa goiaba.


Falta o sonho da palma
da mão
no começo da seca estação.



José Luís Mendonça (Angola)
 in Chuva Novembrina

15 de agosto de 2011

A IDA AO NAMIBE (Conto de Ondjaki)


Fomos num avião bem pequenino. Íamos passar quinze dias noutra província. Era o sítio onde tinha nascido o meu pai: chama-se Namibe. O meu avô disse-me que se chamava Moçâmedes.
Para mim os nomes não interessavam muito. O que me deixava mais curioso é que me disseram que lá havia um deserto, e eu já tinha aprendido na escola que era a província de Angola que tinha avestruzes que corriam bué rápido, tinha gazelas e a famosa Welwitchia mirabilis, a planta mais bonita de todos os desertos do mundo.
Quando saímos do avião já fazia bué de frio. Estávamos no mês de Agosto, mês do Cacimbo para todas as crianças que gostam de sentir aquela geada das cinco da tarde, e mês das piores crises de asma para mim. Mas aquela província era tão bonita e gostei tanto de ter passado aquelas duas semanas na casa do primo Beto que nem tive nenhuma crise. Foi muito bom conhecer a província do Namibe.
Os dois primeiros dias ficámos na cidade, na casa desse primo do meu pai chamado Beto. Como toda a gente lhe chamava "primo Beto", eu também cheguei na sala e chamei-lhe de primo Beto. Todos os mais velhos riram, só a minha mãe não riu. Mas depois passou-me logo essa atrapalhação porque vi, pela primeira vez na minha vida, esses caroços que eles chamavam de "tremoços". Por alguma razão o meu pai ainda não tinha me chamado para eu vir provar. É que eu era assim um pouco estraga-tudo nessa altura, e o meu pai já devia desconfiar mais ou menos o que eu ia fazer com os tais tremoços.
Disseram para eu provar, não gostei do sabor. Mas pelo formato, e também por causa da experiência que eu já tinha com as fisgas lá na minha rua de Luanda, vi que aquele tremoço dava masé para ser disparado só assim apertando com os dedos. Fui lá fora treinar na árvore e quando voltei à sala já tinha a pontaria bem afinada. A primeira vítima foi a minha irmã, a segunda foi uma velha que estava lá sentada e que era muda. Fiquei todo satisfeito porque pensei que ela não fosse me queixar. Mas era uma velha queixinhas e o meu pai pôs-me de castigo.
O resto dos dias passámos na quinta do primo Beto. Aí gostei muito de ter conhecido uma horta com um pequeno lago, onde nós arrancávamos o tomate do chão, lavávamos e comíamos logo ali. Também uma menina muito bonita chamada Micaela, ensinou a mim e à mana Tchi a comer batata-doce crua, que era uma maravilha. Comíamos a bata-doce e, se tínhamos sede, atacávamos o tomate. Voltávamos os três para a quinta, ao fim do dia, e eu dava corrida aos perús. Também nunca tinha conhecido um perú assim de perto com os gritos dele tão engraçados de glu-glu.
O pai da Micaela, o primo Zequinha, foi muito simpático e ensinou-me duas técnicas de caçar rolas, uma era pôr visgo nas árvores e esperar os pássaros pousarem, e a outra, que eu gostei mais, era usar a arma de chumbo para tentar caçar alguma coisa. Digo "tentar" porque a minha pontaria não era lá muito boa, então dediquei-me mais à técnica da cola branca na árvore.
De manhã acordávamos cedinho e era tudo muito frio e muito bonito. Eu usava aquele casaco azul bem antigo que a minha mãe me deu, e que tinha um tecido bem macio tipo veludo que eu adorava tanto. Matabichávamos devagar. Os mais velhos falavam devagar. Combinaram ir à caça. A minha irmã riu, baixinho, e não disse a ninguém, mas eu sei que ela viu a maneira como eu olhava para a Micaela. É que a Micaela era muito bonita.
Podíamos brincar de manhã e até perto da hora do almoço. Ajudávamos a pôr a mesa, e depois do almoço eu e a mana Tchi tínhamos que estudar um bocado. Havia também um livro, sobre o comportamento do corpo humano, que a minha mãe dividiu em dez partes para eu e ela lermos um bocadinho todos os dias. Quando chegou o capítulo das relações sexuais eu gostei muito daquelas fotografias do homem deitado todo nu com a mulher, e da parte que dizia que, para fazer um filho, "o homem introduzia suavemente o pénis na vagina da mulher". Eu nunca queria avançar esse capítulo. A minha mãe é muito querida porque ela sabia que já tínhamos passado aquele capítulo mas deixou-me repetir outra vez a lição.
Um dia, ao fim da tarde, o sol estava muito bonito assim todo amarelo quase bem torrado. O meu pai tinha ido à caça com o primo Beto e o primo Zequinha também. A mana Tchi tava a descansar e a minha mãe a ler. Eu perguntei à Micaela se ela queria dar uma volta comigo ali pela quinta. Ela disse que sim. Mas a volta foi muito rápida, e eu perguntei se ela queria dar outra volta. Ela riu e disse que sim. Como não queríamos dar outra volta, sentámo-nos numas pedras mais distantes da casa e eu tinha muita vergonha mas também muita vontade de lhe perguntar se ela queria namorar comigo. E ela disse que sim. Então, talvez para comemorar, demos mais duas voltas à casa, mas já de mãos dadas.
Na província do Namibe eu conheci a avestruz, as gazelas, um montão de pássaros, o deserto, e nesse dia à noite, o meu pai e os primos dele caçaram um olongo. Aquilo é que foi ficar de boca aberta: eu nunca tinha visto um animal tão grande e tão pesado, e também nunca tinha visto umas armas tão compridas. O primo Zequinha disse que até podiam matar elefantes com aquelas balas, eu pensei que não era verdade, mas o meu pai disse-me que sim.
No último dia de manhã é que o meu pai se lembrou de tirar fotografias a todos. Eu também aproveitei uns pássaros que o primo Zequinha já tinha conseguido matar, pus todos assim no chão perto dumas pedras e fui buscar a arma de chumbo. Fiz um póster de joelho no chão estilo filme de cobói e o meu pai tirou uma foto que eu tenho até hoje, também com chapéu que me ficava grande mas que tinha assim aquele estilo do Trinitá.
Gosto muito dessas fotos todas que nós tirámos na província do Namibe, tem uma muito bonita da minha mãe bem distraída a fumar um cigarro, tem a foto do meu pai perto do olongo que eles tinham caçado mas, para dizer mesmo a verdade, a foto mais bonita é uma que tou eu, a Micaela e a mana Tchi. A Micaela tá bonita, eu até que tou posterado, mas a mana Tchi, com o fato olímpico vermelho também desse tecido fofo tipo veludo, a mana Tchi é a que está mais bonita: com o riso bem bonito e, assim quase a sair da foto, os dois puchinhos, bem grandes, a prender o cabelo todo preto dela. A mana Tchi.

Ondjaki (Angola)
Retirado do livro "Os da Minha Rua" Caminho.

Ondjaki nasceu em Luanda, em 1977. Ficcionista e poeta. Escreve para cinema e co-realizou um documentário sobre a cidade de Luanda (Oxalá cresçam Pitangas - histórias de Luanda, 2006). É licenciado em Sociologia. Alguns livros seus foram traduzidos para francês, espanhol, italiano, alemão e inglês.

9 de agosto de 2011

TERCEIRO LUGAR NO PRÉMIO DE POESIA - DINAH RAPHAELLUS


O Prêmio Literário Valdeck Almeida de Jesus de Poesia 2010 anuncia os vencedores do concurso:

Lista por Poema – Autor – Cidade

1º: Pálidos Mistérios – Grigório Rocha (Salvador-BA)

2°: Finados – André Sesti Diefenbach (Porto Alegre-RS)

3°: Ambiguidade – Dina P. Pereira da Costa - DINAH RAPHAELLUS- (Aveiro, Portugal)

4°: Partes deste Amor – Antonio Almeida (Rio de Janeiro-RJ)

5°: Enigma – Renata Paccola (São Paulo-SP)

6°: Café – Ari Lins Pedrosa (Maceió-AL)

7°: Lama – Renata Rimet (Salvador-BA)

8°: Viagem – Yao Jingming (Macau, China)

9°: Barganha – Tatiana Alves (Rio de Janeiro-RJ)

10°: Poema Xipófago – Gêmeo – Hélio José Destro (São Paulo-SP)


Menções Honrosas:

Ramagem – Amélia Marcionila Raposo da Luz (Pirapetinga-MG)

Para escrever um poema imperfeito - André Caldas (Rio de Janeiro–RJ)

Dualismo – Augusto Cesar Ribeiro Rocha (São Luís-MA)

Vem sem música… – David Erlich (Lisboa, Portugal)

N’outra margem – Diogo Cantante (Aveiro, Portugal)

Poema Andrógino – Flávio Lanzarini (Rio de Janeiro-RJ)

Ária da chuva – Helena Barbagelata (Almada, Portugal)

Mulher poema – João Gomes de Almeida (Lisboa, Portugal)

Regressar de novo – João José Ferreira (Inglaterra)

Distância – Marcos Antônio Maués Vitelli (Marajó-PA)




Eis o poema Premiado:




AMBIGUIDADE

Desafiavas-me escondido por detrás das vírgulas
E rias, rias iludido que nas reticências frívolas
Arranjavas abrigo, um lar amigo para nossas demências
Ahahahah...como os nossos risos cresciam...
Balões de primaveras no outono de nossas vidas
Unguentos miraculosos sarando nossas feridas
Não...não falo de quimeras, mas sim das longas esperas
Com que perpetuamos os sentidos, reais e vividos
Nas rimas pintamos feras, e moldamos de barro
Muitas prosas, sonetos feitos duetos, laranjais frescos
De perfume índigo...dos sons fizemos esferas,
Bancos de jardins bebendo ópios de trigo.
Nas muralhas das odes...lindos arcos arabescos
Arquitetura debruada a linho...
Na ambiguidade da poesia...a fragrância de lilás e pinho!!!


Dinah Raphaellus (Dina P. Pereira da Costa)




14 de julho de 2011

E EU ERA O TEU KWANZA*...

Rio Kwanza (Barragem de Kambambe)

E eu era o teu kwanza
Caudaloso
E tortuoso
Destreza
A farfalhar as margens
Das tuas paragens!

Um kwanza vaidoso
E sinuoso
A fundir a doçura
Do meu açúcar
Na salgadura
Das ondulações do teu mar!

Ou ainda a nostalgia
Dum pôr-do-sol a entardecer
A luz do teu dia
Eu era a delicadeza
Duma brisa
A sussurrar-te o amanhecer!

Era a noite solitária
A beijar a insónia
Da tua madrugada
Uma mania
D’aurora adiada
Na maré da tua praia!

Era a melodia
Do trecho
Do canto dum riacho
Harmonia
D’águas a batucarem pedras
E a polirem lascas ásperas!

Um aceno distante
No anoitecer
Da tua noite
Dormida-acordada
Eu era o kwanza da tua almofada
A balbuciar-te o alvorecer!


Décio Bettencourt Mateus in "Xé Candongueiro!"
Luanda, 07 de Junho de 2007
http://mulembeira.blogspot.com/ 

7 de janeiro de 2011

MALANGATANA: PINTURA DE SANGUE E VIDA

Malangatana partiu, mas fica vivo nos tracos e nas cores da sua pintura: sangue e vida!

Malangatana Valente Ngwenya  


Biografia


Nasceu na vila moçambicana de Matalana. Passou a sua infância a ajudar a sua mãe na fazenda enquanto frequentava a Escola da Missão Suíça protestante, onde aprendeu a ler e a escrever, e após o seu encerramento, na Escola da Missão Católica, concluindo a terceira classe em 1948. Aos 12 anos de idade, mudou-se para Lourenço Marques (actual Maputo) à procura de trabalho, tendo trabalhado em vários ofícios humildes, acabando por em 1953 arranjar trabalho como apanhador de bolas num clube de ténis, o que lhe permitiu retomar os estudos, indo a classes nocturnas que lhe despertaram o interesse pelas artes, tendo tido como mestre o arquitecto Garizo do Carmo. Um dos membros do clube de ténis, Augusto Cabral, ofereceu-lhe material de pintura e ajudou-o a vender os seus primeiros trabalhos.
Em 1958, ingressou no Núcleo de Arte, uma organização artística local, recebendo o apoio do pintor Zé Júlio. No ano seguinte, expôs a sua arte publicamente, pela primeira vez, numa exposição colectiva, passando a artista profissional graças ao apoio oferecido pelo arquitecto português Pancho Guedes, através da cedência de um espaço onde pode criar o seu atelier e através da aquisição mensal de dois quadros. Em 1961, aos 25 anos, fez a sua primeira exposição individual, no Banco Nacional Ultramarino. Em 1963, publicou alguns dos seus poemas no jornal “Orfeu Negro” e foi incluído na “Antologia da Poesia Moderna Africana”.
Nessa altura é indiciado como membro da FRELIMO, ficando preso na cadeia da Machava, até ser absolvido a 23 de Março de 1966. A 4 de Janeiro de 1971, foi detido com o intuito de que esclarecesse o simbolismo do quadro "25 de Setembro" que tinha exposto recentemente no Núcleo de Arte, pondo em risco a sua partida para Portugal, onde tinha obtido uma bolsa da Fundação Gulbenkian para estudar gravura e cerâmica.
Depois da independência de Moçambique, foi eleito deputado em 1990, pela FRELIMO, em 1998 foi eleito para a Assembleia Municipal de Maputo e reeleito em 2003, participou em acções de alfabetização e na organização das aldeias comunais na Província de Nampula. Foi um dos fundadores do “Movimento Moçambicano para a Paz” e fez parte dos “Artistas do Mundo contra o Apartheid”.
Faleceu a 5 de Janeiro de 2011 no Hospital Pedro Hispano, em Matosinhos, Portugal.

Retirado de Wikipedia
Telas de Malangatana