25 de fevereiro de 2015

GOTÍCULAS DE VELUDO


 


O silêncio tece gotículas
Surdas de veludo
Com que me visto nua;
Pegadas lúgubres
Que sigo pretas de xisto,
Como marchas fúnebres.
Meu corpo pesado arrasto
Comigo, não sei se existo
Ou extingo, apenas sigo
O que nem eu já sei,
Talvez a pena cinzenta
Que do nada nasceu
Em minhas mãos magoadas
–Mensagem de anjos ou demónios–
Leve, indecifrada,
Enigma perdido entre meus dedos
Como pequenos grãos
E os mortais continuam como
Se nada se passasse, cegos,
Alheios ao que deveriam ver.
Lutas de nada nunca vencem,
Perdem-se no vazio do nada
E transformadas em pó
Para sempre desfalecem.
Acordem, ouçam o nascer
Da alvorada, sintam o sorriso
Pálido da lua, guardem o beijo do mar...
Acordem! Esta vida só se despe
Quando está nua de chuva e trovoada
Por acordar ou quando, caiada de branco,
Se juntam as ondas e a areia vai beijar.



Dinah Raphaellus (Portugal)

8 de fevereiro de 2015

FLORES DE SAL



És o meu (a)mar
mesmo que os cães ladrem
sem dono
na praia deserta

desgrenhado na orla
dos belos precipícios
lavras escarpas
arredondas arestas
despojas-te de salivas
nos póros das areias

És o meu (a)mar
voz diáfana de cristais
onde despontam vertebrados
barcos remos e passos

as minhas mãos
nas tuas

flores de sal


Eufrázio Filipe (Portugal) 

Retirado do blog do autor: http://mararavel.blogspot.co.uk/ 

3 de fevereiro de 2015

OBRIGADO, JORGE DE SENNA



BIBLIOTECA MUNICIPAL – ESTANTE DA POESIA 82-1

(Para Jorge de Senna que me revelou Emily.)



Estavas abandonada na estante
pouco vasculhada da poesia.
Foi lá que te encontrei
caída desamparada perdida.
Não tu mas o verbo gráfico
da tua voz e lembro, ainda,
as impressões causadas
pelos teus pequenos poemas.
Vozes ágeis com asas
de abelhas frágeis e sonoridades
de minúsculas calemas
desenhadas em lusófonas
tatuagens pelas mãos de fina pena,
beleza e suave mestria
do poeta Jorge de Senna.


Namibiano Ferreira

2 de fevereiro de 2015

CASAMENTO




Há mulheres que dizem: 
Meu marido, se quiser pescar, pesque, 
mas que limpe os peixes. 
Eu não. A qualquer hora da noite me levanto, 
ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar. 
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha, 
de vez em quando os cotovelos se esbarram, 
ele fala coisas como "este foi difícil" 
"prateou no ar dando rabanadas" 
e faz o gesto com a mão.


O silêncio de quando nos vimos a primeira vez 
atravessa a cozinha como um rio profundo. 
Por fim, os peixes na travessa, 
vamos dormir. 
Coisas prateadas espocam: 
somos noivo e noiva. 


Adélia Prado (Brasil)