JOAO TALA É UM DOS NOVOS TALENTOS DA LITERATURA ANGOLANA.
Joao Tala (poeta e escritor angolano)
ANA RITA - CONTO DE JOAO TALA (ANGOLA)
O sorriso ainda é o mesmo apesar de contrariado por um rosto flácido, pousado sobre o peso dos anos. Li-lhe na sombra os olhos da alma e pareceu-me igual a tantas e tantas mulheres apreensivas dos constantes recuos de suas vidas. Não era sempre que se podia conservar um sorriso a largo dos acontecimentos mais disparatados no interior de um território que pouco ou nada se realizava no sonho da gente. Reconheci-a ante o susto dessa velhice.
– Ana Rita, quanto tempo já nos comeram – disse-lhe ansioso de ouvir de novo o timbre agudo da sua garganta; tinha voz receosa, talvez cautelosa. E sofrimento.
Respondeu-me finalmente, agora fazendo sobressaltar a voz.
– Tem muitos anos, nos conhecemos. Aonde estavas durante essa vida em que nos puseram fogo? – disse, a sua linguagem é o retrato da guerra.
Em 1969, Ana Rita abandonava os estudos para se casar. O noivo era um militar do exército colonial, uma pessoa de quem se lembra como vinda de boas famílias. Naquela altura, Ana completaria dezoito anos, tão moça e arrumadinha, se lhe notava o sonho na lentidão dos passos – sabe aquela adolescência no sono de mulher?
Então. O noivado descoseu-se, o casamento não se realizou. Muitos anos depois disseram-me que o homem tinha sido seduzido por uma gatuna chegada do puto; e que Ana tivera então que descobrir as outras duas partes de um “rosário” feminino – são promessas que dão à mulher. – Na época uma mulher da gente tinha apenas três opções: ser casada, beata ou prostituta. Digo mais ou menos nessa proximidade, já que solteira não tinha vez.
As opções de Ana Rita foram sempre agravadas por azar. Por conseguinte, ela é de uma família católica formada de muitas mulheres onde o catolicismo tinha pinta de obrigatoriedade. Duas de suas primas eram madres e a irmã mais crescida concorria para tal. Tinha também um tio padre que vivia no Congo.
Assim ela achou-se numa opção contundente, diante da Fé de todas as crenças. Teceu um manto religioso para a alma e com o instrumento da fé foi a abrir conventos para refugiar-se daquele mundo que não a desagravara.
Não sei por quanto tempo, nem ela o sabia, as portas atrás de si permaneceriam fechadas; quanto duraria o degredo – apesar de que coisas da alma duram quanto o tamanho da fé e de Ana esse mundo é pequeno ante a crónica da sua alma.
Então. Restou aqui fora aquele sorriso que nem velhice consegue riscar, num rosto que perambulava aí, no susto das épocas que degradaram nossos semblantes – como se vê, pessoas ainda assustadas, esquinadas na espera de qualquer coisa que vem aí, ninguém sabe o quê, mas qualquer raiva de novo a deflagrar de nós próprios. Aliás, sempre fomos assim, não tem conversa.
Encontrei-a sobre o peso dos seus anos arrastando um corpo magro. Provavelmente nada mais lhe dói. Fica-me ainda a rememoração de tudo que se passou daquela vez que Ana Rita desconseguiu na vocação.
Não saiu do convento pelos fundos, mas pela porta que lhe estava permanentemente destinada; uma porta se abria aos seus desejos como se fosse magia. Abriu-se lenta, completa; o som gutural de dobradiças nos caixilhos.
Começou após aquela visita sofisticada que eu e o meu amigo Beto Bengala efectuamos à comunidade das Irmãs Clarissa.
Beto possuía uma religiosidade centrada no catolicismo que também vinha de família, pergaminhos da fé que sobejava por Malanje inteira. Dele diziam ser um homem crepuscular...
Não entendo. Vive de crepúsculos ou contando crepúsculos? Depois é que ele me deu a conhecer que se ajoelhava ao pôr e ao nascer do sol para rezar, com a perseverança de um muçulmano, passe o exagero. Minha euforia em Cristo aumentou com a sua dedicação à minha enfraquecida alma e fê-lo para aumentar nossa amizade.
Se não fosse ele, jamais conseguiria entrar no recinto fortificado das Clarissa para olhar o rosto da Ana Rita, um rosto que sempre me encarava próximo ao choro, como uma criança apanhada em erro com medo de ser castigada. Assim ela era, uma sensibilidade se arrastava sobre a minha pele – ela tocava demais meu exterior, como a lava expelida de um vulcão interiorizado.
É proibida a visita de machos no convento. Não pelo simples facto de ser homem – macho é um estado diferente do carácter formado no celibato. O Beto Bengala desconta-se porque é diferente: antigo sacristão, vindo de uma família forjada na palavra de Deus. Estando a mais, junto-me às suas afinidades.
Recobrada da aflição, entre deixar-nos entrar e a proibição tradicional no espaço das Clarissa, a Madre Superior deu-nos muita alegria.
Com Ana Rita apareceu um coro de raparigas, adivinha-se logo desejos de rever por um dia, nem que seja a sombra de um homem. Um encontro insólito de que vou me lembrar sempre.
Primeiro, chegaram com o coro absoluto do silêncio; depois, uma delas – ainda me lembro do seu vestido branco com auréolas vermelhas e lenço azul marinho na cabeça, subiu sobre a onda e em seu pedestal se destacou para quebrar a mudez.
– Nunca mais vi um homem. – disse com uma tonalidade exclamativa, com um impulso apenas feminino.
– Precisava ver? – indaguei a despropósito com um gesto visivelmente sensível.
Precisei agradar mulheres na idade de partir o coco, postando de vez meu lado masculino. A maioria das meninas, senão todas, não viam um homem por mais de seis meses, disseram, o cheiro de machos se lhes tocava por isso fundo.
É uma questão de vocação.
– E você tem vocação? – indaguei a Ana Rita que parecia penalizada com tudo aquilo.
Agora um olhar trêmulo; um sorriso assustado; de cara com a sua timidez.
A moça que dissera nunca mais ter visto um homem portava-se com assanhadice. Era uma moçambicana com ares de ingenuidade, mas que adentrava nos olhares lúbricos e furtivos com que a adornei.
Diante de nós, separados por uma grade metálica, pousavam cerca de doze jovens belas, suaves, comunicativas. Não me fiz rogado, dei-me a elas a falar da relação homem/mulher. Tremiam o riso mas encantavam-se aquelas mulheres que meses e meses lhes estava vedada a proximidade masculina porque o segundo instinto se impôs e cupido chegou de boleia.
Não faltaria afinal uma espia, uma madre caducada e fria. E o que estava bom demais logo coartado com o fim da comédia. Foram imediatamente recolhidas as raparigas do outro mundo.
Beto Bengala que tinha uma irmã entre as moças passou o tempo restante me acusando e amaldiçoando, quase me chamava psicopata. Eu disse: fui lá para não rezar com as meninas – lógico, não é mesmo?
– Tanta puta por aí e você vai logo de zombaria sobre aquelas pobres meninas, comprometidas com a Palavra. Só um anormal como tu. – Xinguilava [gesticulava]raivoso o Beto.
Pelo menos o Beto tinha fundamentos, com toda a razão. Mais razão ainda depois que certas coisas aconteceram: a excitação de freiras é algo soberbo mas por vezes maligno, e impaciente; deixá-las com a angústia num torvelinho de hormónios. Tudo isso madrugou, sem a despertação, uma série de lembranças imortais no sonho absoluto de Ana Rita.
Portava-se uma mulher febril numa catástrofe de delírios. Seu primeiro sonho depois daquele encontro inesperado foi esmagado por uma convulsão generalizada e faminta, gemidos rosados mas caóticos abalos nas palavras contorcidas; corpo santiforme no equívoco do mundo com os desejos mundanos do inconsciente derramados no lençol. O lençol sempre encharcado com suor, baba, fluídos vaginais e urina; e sonhos. Sonhos altos, sonhos imundos para aquela comunidade religiosa preste a dar noivas e esposas caprichosas para Jesus Cristo.
Viveu Ana Rita na redondeza do sonho durante muitos dias. Despertava para o sonambulismo que voltava a agravar-se de febre, delírios e contorções sensuais. Um dia acordou de vez, fraca, porém mais esclarecida. Voltou-lhe aquele sorriso de sol num rosto dúbio. Abriu as portas do convento e chamou a si aqueles desejos dum mundo quente.
Contam que fora tanto o fogo e a sofreguidão que se achasse um homem no halo do seu percurso, certamente lhe trepava logo para sacudir o tédio e as teias que ganhara num lugar parado onde se vive conciliado com a morte – não pelos dias sinistros que nos anos 70 se alastravam como aquelas noites que a memória aterroriza; a morte a rir-se do que está vivo; não da morte assim como ela é, verdadeira e terminal mas, isto sim, a idade de que se idealiza parada, sequestrada... E o mundo só parece acontecer fora das unidades fechadas, fora da internação.
Saíra a procura dos sonhos. Desde aquela vez que me ouviram uma linguagem nova, passei a ser para ela e para muitas outras mulheres apertadas naquele convento, a abundância dos escassos dias oníricos que em Ana Rita pioravam para o conhecido purgatório dos delírios e alucinações meteóricas.
Tudo isso levara anos. Depois que se completou a metamorfose dela eu não estava mais cá fora. Tinha sido rusgado para a tropa. Naquele tempo era rigorosamente assim, apanhavam involuntários (uma rusga é um processo em que se permite o sequestro oficial) que incorporavam nas fileiras marxista de um governo que parecia embruxado, perto do povo mas irrealizável.
– Onde está aquele que tem chamas na boca? – perguntava insistente para o Beto Bengala.
Beto é um tipo muito simples. Mais fácil para ele seria exercitar-se para o divino do que abrir metáforas de fogo; não enche a boca com palavras sexuais para as deitar no meio da depravação mundial, onde qualquer mulher pode ser banalizada. Não se sabe se algum dia ele vai se casar por alguma razão nobre que não seja sacramental.
Também dizem que Beto é vagaroso com as mulheres, que jamais olha para a bunda duma dama. Tem tudo – dizem as fêmeas – para agradar filhinhas de papai, porém, nunca namorou garota alguma. Mas tem mesmo gente assim... não tem?
Ana Rita foi entrando, à minha procura, pelas ruas da vida; e sua confusão mental abonava mais desesperanças com deambulação sonolenta de rua em rua.
– Onde está o fogueiro com o calor que preciso sentir? São as minhas sensações que ele tem na boca. – Solicitava, mas minhas palavras não foram desse fogo todo que ela clama e reclama.
Falta de respeito – lhe falaram confessos puritanos e beatas e beatos que sempre andam demais na sua vida – não toma nenhum cuidado com a língua. E pensar, ia ser freira... Pobre Cristo!
Algum padre inadvertido, muito tolerante para com a paixão humana, tentou protegê-la com a sua fé. Defendê-la dos acasos mundanos na encruzilhada de qualquer infidelidade.
– Haja compaixão. É apenas uma ovelha desgarrada – ele disse.
Ouviu do bom:
– As putas também são, padre.
Contaram-me tudo o que aconteceu com esse amor desaparecido, a Ana Rita. Eu estava impossível, perdido na história militar.
Anos depois que voltei da kuemba [serviço militar], fui encontra-la totalmente diferente. Chamavam-lhe “bandida” e carregava uma gravidez indesejada, de algum amante desconhecido. Seu conceito de vida aterrorizou-me. Tinha um rosto frio como eu tinha visto em filmes de agentes secretos, embora abrisse, a calhar, ainda o sorriso agradável. Eu desejava que falasse do seu futuro filho, o menino iria nascer do seu ventre.
Ríspida! Ela se tornou numa mulher bastante ríspida. Irrisória.
– Que esse pavor me venha parar nos braços –; disse, nem lastimosa – se nascer um gato ou uma esperança, o nome é depois.
– Ritinha, não se fala assim de um filho... nem nasceu ainda, coitado. – Implorei.
– Eu me desgastei. Onde tu estavas enquanto eu aqui me desgastava de todas as dores?
– Ana Rita, ouça-me: nunca um homem pode ser tanto. Ninguém desgasta à toa mulher que seja.
– Nunca mais vou sentir a dor de uma voz. – Ironizou, era uma crítica à minha ausentada vida enquanto ela procurava...
– Eu procurei o teu nome... vai estar sempre perdido como ninguém. – Finalizou desesperançada. Afinal nem conhecia meu nome.Formidável – formulei em meu pensamento vinte anos depois que o caso de Ana Rita me deixava de espírito atormentado. Talvez fosse por demasiada compaixão ou por excesso de zelo. – Formidável.
Como disse no começo, o sorriso é ainda tão claro apesar da apreensão secular que se nos repartiu de todas as guerras angolanas. Vinte anos tinham pesado firme sobre caminhos que ela não pisou, que não a levaram para lado nenhum.
Estavam mortos os caminhos por que devia passar, de viagem nocturna para a sobriedade. Tudo que perseguiu, depois que ela não me viu mais, foram desejos inconfessáveis ou sigilos do munhungo [libertinagem] – o mesmo que o mundo ainda vê mas que para si guarda como se tal mundo nada mais de si pode achar: degeneração. Apesar de que os olhos continuam sorridentes.
Agora é tarde demais para recomeçar.
Joao Tala (Angola)