3 de abril de 2009

UM POEMA DE LUÍS QUINTAIS

I

O estrépito que o passado faz.

As palavras gritadas.

A terrível máquina de dizer

e calar.

Tudo gira no nada

e no nada se compraz.

Uma fúria ergue-se

no plasma.

Uma cidade é destruída.

Escuta os muros

que se abatem.

Desenha árvores,

o rápido deslizar de nuvens,

o desenho que a mão faz

quando teme agarrar o sentido,

e o sentido é escuro, escuro.

II

O dia acaba, e com ele

a incerta medida dos teus erros.

Uma lâmina de vento

inicia-se no escuro.

A noite apaga o teu zelo.

O vestígio do ontem

cruza o sítio da memória,

somente atenuado

por outras presenças.

III

O rio escurecia

e depois aclarava e depois escurecia.

As árvores gravitavam nas margens

da tua memória,

faziam correr estilos de morte e promessa.

As personagens do inscrevível

seriam afinal mais monstruosas

do que se suspeitara,

e os insectos emudeciam

enquanto o outono regurgitava as suas vítimas.

E tu, tu? E tu fazias abolir

o sentido para fazer eclodir de novo

o novo sentido. E tu procuravas entre despojos

um aro de bicicleta partido,

um casaco com bolsos que dessem para o improvável,

um qualquer outro achado preso à cega geometria

e à circunstância do procurar.

IV

Atravessas a ponte, lês o jornal, alheias-te

do rio, mas o rio sitia-te

com a sua música de eleição,

a que julgaste escutar,

apesar dos sinais de morte

te encadearem

com a sua luz extrema.

Terás tu ainda a certeza do começo

movendo-se no écran

do primitivo medo

de que não há limite,

fuga, consolo.

V

Animal afeiçoado à metamorfose e à fuga,

o rio muda de cor

e tu anotas o denso espelho

e imaginas a métrica

que o levará à foz.

O rio é o teu deserto

e a palavra

apenas palavra

com que o descreves

a tenda onde o provisório

vem habitar.

Luís Quintais nasceu em 1968 em Angola, Luena (exLuso). Antropólogo, poeta e ensaísta, lecciona no Departamento de Antropologia da Universidade de Coimbra. Como antropólogo tem publicado ensaios em diversas revistas da especialidade sobre as implicações sociais e culturais do conhecimento biomédico, em particular sobre a psiquiatria e seus contextos. Como poeta, publicou A Imprecisa Melancolia (1995), Lamento (1999), Umbria (1999), Verso Antigo (2001), Angst (2002), Duelo (2004), obra a que foram atribuídos o Prémio Pen Clube de Poesia e o Prémio Luís Miguel Nava – Poesia 2005 e Canto Onde(2006).

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