29 de junho de 2013

REQUIEM POR MUITOS MAIOS

 

Conheci tipos que viveram muito. Estão
mortos, quase todos: de suicídio, de cansaço.
de álcool, da obrigação de viver
que os consumia. Que ficou das suas vidas? Que
mulheres os lembram com a nostalgia
de um abraço? Que amigos falam ainda, por vezes,
para o lado, como se eles estivessem à sua
beira?

No entanto, invejo-os. Acompanhei-os
em noites de bares e insónia até ao fundo
da madrugada; despejei o fundo dos seus copos,
onde só os restos de vinho manchavam
o vidro; respirei o fumo dessas salas onde as suas
vozes se amontoavam como cadeiras num fim
de festa. Vi-os partir, um a um, na secura
das despedidas.

E ouvi os queixumes dessas a quem
roubaram a vida. Recolhi as suas palavras em versos
feitos de lágrimas e silêncios. Encostei-me
à palidez dos seus rostos, perguntando por eles - os
amantes luminosos da noite. O sol limpava-lhes
as olheiras; uma saudade marítima caía-lhes
dos ombros nus. Amei-as sem nada lhes dizer - nem do amor,
nem do destino desses que elas amaram.

Conheci tipos que viveram muito - os
que nunca souberam nada da própria vida.


Nuno Júdice (Portugal)

ALITERAÇÃO EM S




ssss sibilinos soprando sonoros ssss

sopram sopros soprados

sob sóis sem sangue

sorvendo somas simétricas

sentidas sobre sádicas

sílabas silvestres silvos

sem saber sem sonhar

sáficos sonetos silábicos

sobre sândalos safiras

sedas sedosas sedentas

saudosas salinas salsugens

ssss sibilinos soprando sonoros ssss

sopram sopranos sentidos

sem sul sem sol sem sal.




Namibiano Ferreira


(1990)

28 de junho de 2013

A CREED


I HOLD that when a person dies
His soul returns again to earth;
Arrayed in some new flesh-disguise
Another mother gives him birth.
With sturdier limbs and brighter brain
The old soul takes the road again.
Such is my own belief and trust;
This hand, this hand that holds the pen,
Has many a hundred times been dust
And turned, as dust, to dust again;
These eyes of mine have blinked and shown
In Thebes, in Troy, in Babylon.
All that I rightly think or do,
Or make, or spoil, or bless, or blast,
Is curse or blessing justly due
For sloth or effort in the past.
My life's a statement of the sum
Of vice indulged, or overcome.
I know that in my lives to be
My sorry heart will ache and burn,
And worship, unavailingly,
The woman whom I used to spurn,
And shake to see another have
The love I spurned, the love she gave.
And I shall know, in angry words,
In gibes, and mocks, and many a tear,
A carrion flock of homing-birds,
The gibes and scorns I uttered here.
The brave word that I failed to speak
Will brand me dastard on the cheek.
And as I wander on the roads
I shall be helped and healed and blessed;
Dear words shall cheer and be as goads
To urge to heights before unguessed.
My road shall be the road I made;
All that I gave shall be repaid.
So shall I fight, so shall I tread,
In this long war beneath the stars;
So shall a glory wreathe my head,
So shall I faint and show the scars,
Until this case, this clogging mould,
Be smithied all to kingly gold.

John Masefield   (England)

27 de junho de 2013

BEM NO FUNDO - PAULO LEMINSKI

Cores & Palavras, está a dever umas quantas postagens a este brilhante poeta brasileiro. As minhas desculpas a Paulo Leminski.



Bem no Fundo 


No fundo, no fundo, 
bem lá no fundo, 
a gente gostaria 
de ver nossos problemas 
resolvidos por decreto 

a partir desta data, 
aquela mágoa sem remédio 
é considerada nula 
e sobre ela — silêncio perpétuo 

extinto por lei todo o remorso, 
maldito seja que olhas pra trás, 
lá pra trás não há nada, 
e nada mais 

mas problemas não se resolvem, 
problemas têm família grande, 
e aos domingos 
saem todos a passear 
o problema, sua senhora 
e outros pequenos probleminhas.

Paulo Leminski (Brasil)

26 de junho de 2013

25 de junho de 2013

POEMA DE DINAH RAPHAELLUS


Deitada neste cipreste que é a vida,
Durmo aconchegada pelo sol.
Sol de janelas abertas de par em par,
De persianas encobertas
E de curtinas bordadas a espuma-mar.

Durmo de olhos abertos,
Irrequietos desta fragância que se adivinha
Pendurada no anzol da maré.
Espero que o tempo adormeça
E o mundo perca a cabeça no cheiro
Encontrado da maresia.



Dinah Raphaellus (Portugal)

EM MAIO HOUVE MAIAKOVSKI



Em Maio veio Maiakovski, o futurista
trazer as flores que Maio não tinha
e versos que soavam como bigornas.
Se calhar pensam que foste jansenista,
ou modernista, sem ser moderno.
Como tu gostavas de quadrados!
Há quem te pense até um geómetra
e veja nos teus poemas
o despontar de um novo Pitágoras -
de cada adjectivo fazias uma hipotenusa
davas formas poligonais aos advérbios
até fizeste triângulos com interjeições...
e da sintaxe fizeste um soviete, o supremo.
Dizem-me que mesmo um soviete
por supremo que seja não é geometria.
Não terá ao menos uma linha recta?
Era Abril, e já pressentias o futuro Maio
tu que eras um futurista condicional
e desenhaste em Abril
todas as flores que devem enfeitar os Maios.


António Eduardo Lico 

24 de junho de 2013

ALÉM DA FORMA DAS SEMENTES



Todas as palavras de um ngoma são
lamentos da civilização. Tudo o que
pronuncio é um continente sobre
a memória dos ngomas

mas cada língua é uma nação de conversas
fortalece a raça do espírito o poema da
plebe

e este povo-irmão dissemina na minha
memória o continente erguido da semente


João  Tala (Angola)

NÓS TEMOS CINCO SENTIDOS




Nós temos cinco sentidos:
são dois pares e meio de asas.

- Como quereis o equilíbrio?



David Mourão-Ferreira (Portugal)

O SAL DA LÍNGUA


Escuta, escuta: tenho ainda
uma coisa a dizer.
Não é importante, eu sei, não vai
salvar o mundo, não mudará
a vida de ninguém - mas quem
é hoje capaz de salvar o mundo
ou apenas mudar o sentido
da vida de alguém?
Escuta-me, não te demoro.
É coisa pouca, como a chuvinha
que vem vindo devagar.
São três, quatro palavras, pouco
mais. Palavras que te quero confiar,
para que não se extinga o seu lume,
o seu lume breve.
Palavras que muito amei,
que talvez ame ainda.
Elas são a casa, o sal da língua.

Foi para ti que criei as rosas

Foi para ti que criei as rosas.
Foi para ti que lhes dei perfume.
Para ti rasguei ribeiros
e dei às romãs a cor do lume.

Foi para ti que pus no céu a lua
e o verde mais verde nos pinhais.
Foi para ti que deitei no chão
um corpo aberto como os animais.


Eugénio de Andrade (Portugal)

23 de junho de 2013

ALBA

 


Mi corazón oprimido
siente junto a la alborada
el dolor de sus amores
y el sueño de las distancias.
La luz de la aurora lleva
semillero de nostalgias
y la tristeza sin ojos
de la médula del alma.
La gran tumba de la noche
su negro velo levanta
para ocultar con el día
la inmensa cumbre estrellada.

¡Qué haré yo sobre estos campos
cogiendo nidos y ramas,
rodeado de la aurora
y llena de noche el alma!
¡Qué haré si tienes tus ojos
muertos a las luces claras
y no ha de sentir mi carne
el calor de tus miradas!

¿Por qué te perdí por siempre
en aquella tarde clara?
Hoy mi pecho está reseco
como una estrella apagada.


F. Garcia Lorca (Espanha)

22 de junho de 2013

A SESTA


 
Na rede, que um negro moroso balança,
qual berço de espumas,
formosa crioula repousa e dormita,
enquanto a mucamba nos ares agita
um leque de plumas.

Na rede perpassam as trémulas sombras
dos altos bambus;
e dorme a crioula, de manso embalada,
pendidos os braços da rede nevada
mimosos e nus.

Na rede, suspensa dos ramos erguidos,
suspira e sorri
a lânguida moça, cercada de flores;
aos guinchos dá saltos na esteira de cores
felpudo sagui.

Na rede, por vezes, agita-se a bela,
talvez murmurando
em sonhos as trovas cadentes, saudosas,
que triste colono por noites formosas
descanta chorando.

A rede nos ares do novo flutua,
e a bela a sonhar!
Ao longe nos bosques escuros, cerrados,
de negros cativos os cantos magoados
soluçam no ar.

Na rede olorosa... Silêncio! Deixai-a
dormir em descanso!...
Escravo, balança-lhe a rede serena;
mestiça, teu leque de plumas acena
de manso, de manso...

O vento que passe tranquilo, de leve,
nas folhas do ingá;
as aves que abafem seu canto sentido;
as rodas do «engenho» não façam ruído,

que dorme a sinhá!


Gonçalves Crespo (Brasil/Portugal)

António Cândido Gonçalves Crespo nasceu nos arredores do Rio de Janeiro, Brasil, a 11 de Março de 1846, e faleceu em Lisboa a 11 de Junho de 1883. Veio para Portugal com dez anos de idade. Formou-se em Direito na Universidade de Coimbra, sendo colaborador da Folha, jornal de que era diretor João Penha, poeta a introduzir em Portugal o Parnasianismo. Em 1879 foi eleito deputado às Cortes pelo círculo do Estado da Índia. A poesia de Gonçalves Crespo foi influenciada pela escola parnasiana. Tendo casado com a escritora Maria Amália Vaz de Carvalho, escreveu em colaboração com ela o livro Contos para os Nossos Filhos.


AS TRES PENEIRAS - CONTO

foto da net

O pequeno Raul saiu da escola a correr, chegou a casa muito excitado, e, depois de beijar a mãe, exclamou:
– Já sabes o que dizem do António?
– Espera um pouco, tem paciência. Antes de principiares, lembra-te das três peneiras…
– Mas quais peneiras, minha mãe?
– Sim; vais ouvir e saberás. A primeira chama-se verdade. Tens a certeza de que é certo o que me queres dizer?
– Não; se é certo, não sei.
– Vês?… E a segunda chama-se benevolência. Será benevolente, será boa, essa notícia?
– Não, minha mãe, não é boa.
– E a terceira chama-se necessidade. Será necessário respeitares tudo isso que te contaram desse teu camarada e amigo?
– Não, minha mãe.
– Pois se não é necessário nem benevolente, e talvez nem seja verdade, entendo que é preferível, meu filho, calares a tua boca.
António Botto (Portugal)

21 de junho de 2013

FONTE - I DE HERBERTO HÉLDER



Fonte - I

Ela é a fonte. Eu posso saber que é
a grande fonte
em que todos pensaram. Quando no campo
se procurava o trevo, ou em silêncio
se esperava a noite,
ou se ouvia algures na paz da terra
o urdir do tempo ---
cada um pensava na fonte. Era um manar
secreto e pacífico.
Uma coisa milagrosa que acontecia
ocultamente.

Ninguém falava dela, porque
era imensa. Mas todos a sabiam
como a teta. Como o odre.
Algo sorria dentro de nós.

Minhas irmãs faziam-se mulheres
suavemente. Meu pai lia.
Sorria dentro de mim uma aceitação
do trevo, uma descoberta muito casta.
Era a fonte.

Eu amava-a dolorosa e tranquilamente.
A lua formava-se
com uma ponta subtil de ferocidade,
e a maçã tomava um princípio
de esplendor.

Hoje o sexo desenhou-se. O pensamento
perdeu-se e renasceu.
Hoje sei permanentemente que ela
é a fonte.


                Herberto Hélder (Portugal)

20 de junho de 2013

SOBRE O DESERTO - MANO DAYAK - TEXTO EM FRANCES

Je suis né avec du sable dans les yeux

Le désert ne se raconte pas, il se vit. Alors, comment trouver les mots qui pourraient traduire cette passion que le nomade éprouve pour son désert ? Pour ceux qui n’y ont pas vécu, il apparaît comme un grand espace vide, tandis que pour nous il est infiniment vivant. Comment expliquer cet amour que nous portons à cet environnement si aride et si difficile ?

L’homme est toujours profondément marqué par la terre qu’il habite. Toute sa personnalité est forgée à l’image de cette terre. En cela, le désert reste l’exemple le plus parfait de cette adaptation, de cette intégration de l’homme à son milieu. À l’image de la terre qu’il habite, le Touareg a su se faire humble pour survivre, mais aussi austère et fort pour se défendre. Il sait que, pour survivre, il doit s’adapter au désert, le comprendre, l’écouter. Car le désert sera toujours plus fort que l’homme. Il faut donc pour y vivre, autant de simplicité que de courage.

Le désert est pour moi extrêmement beau et pur, à la fois bouleversant et magique. Chaque fois que je me retrouve face au désert, il m’entraîne dans cet émouvant voyage en moi-même ou s’entrechoquent de nostalgiques souvenirs, les angoisses et les espoirs de la vie. C’est le désert qui m’a enseigné cette communication avec l’infini mystérieux. Le désert c’est le mystère du vent qui chasse devant lui les dunes et qui leur donne les formes les plus étranges avec les lignes les plus pures.
C’est le mystère de l’acacia perdu au milieu de ces étendues de sable comme l’oublié d’un autre temps. C’est le mystère de cette touffe d’herbes surgie de nulle part, poussant dans le sable surchauffé, fragile et vivace à la fois.

C’est l’herbe qui griffe le sable de signes cabalistiques, brin d’herbe devenu dans mon imaginaire le porte-plume des génies dessinant des messages comme autant de signes du destin. C’est encore le mystère de ces orages surgis de nulle part pour déverser leurs cataractes d’eau comme autant de torrents de vie.
C’est enfin le mystère de la gazelle, fragile et gracieuse, fugace apparition, et le mystère de l’addax, puissant maître de ces lieux, seul détenteur du savoir absolu car seul être vivant qui puisse tenir plusieurs années sans boire la moindre goutte d’eau. Il est aussi le seul qui ne respecte pas notre loi d’habitants du désert : « Aman Iman » « l’eau c’est la vie ». Pour l’addax, qu’importe l’eau, il vit.


Le désert, c’est tous ces miracles à la fois, autant de sujets d’émerveillement qui nourrissent cette passion qu’éprouve le Touareg pour le désert. Pour nous, nomades, il n’existe rien au monde de plus émouvant, de plus passionnant qu’une caravane sinuant dans les sables, rien de plus émouvant que la poésie d’un campement nomade à la tombée de la nuit, quand les feux s’allument, que les troupeaux rentrent. Cette heure sacrée pendant laquelle les dunes et le ciel joignaient leurs couleurs embrasées par le soleil couchant.

Qu’est-ce qu’un homme peut désirer de plus lors qu’il a le privilège de s’endormir chaque soir sous un ciel protecteur, un ciel semé de plusieurs millions d’étoiles qui se sont allumées pour illuminer ses rêves ?

Le désert, c’est, pour nous nomades, une passion profonde et absolue, des images que même la mort ne peut avoir le droit de nous enlever un jour. Le désert semble éternel à celui qui l’habite et il offre cette éternité à l’homme qui saura s’y attacher.

Mano Dayak (Níger)
Guerrilheiro tuaregue da liberdade.

Retirado do livro: Je Suis Né Avec du Sables dans les Yeux

19 de junho de 2013

DESCRIÇÃO DA GUERRA EM GUERNICA

Um poema como se fosse uma Via Sacra...


 
 Guernica - Pablo Picasso

I

Entra pela janela
o anjo camponês;
com a terceira luz na mão;
minucioso, habituado
aos interiores de cereal,
aos utensílios
que dormem na fuligem;
os seus olhos rurais
não compreendem bem os símbolos
desta colheita: hélices,
motores furiosos;
e estende mais o braço; planta
no ar, como uma árvore,
a chama do candeeiro.

II

As outras duas luzes
são lisas, ofuscantes;
lembram a cal, o zinco branco
nas pedreiras;
ou nos umbrais
de cantaria aparelhada; bruscamente;
a arder; há o mesmo
branco na lâmpada do teto;
o mesmo zinco
nas máquinas que voam
fabricando o incêndio; e assim,
por toda a parte,
a mesma cal mecânica
vibra os seus cutelos.

III

Ao alto; à esquerda;
onde aparece
a linha da garganta,
a curva distendida como
o gráfico dum grito;
o som é impossível; impede-o pelo menos
o animal fumegante;
com o peso das patas, com os longos
músculos negros; sem esquecer
o sal silencioso
no outro coração:
por cima dele; inútil; a mão desta
mulher de joelhos
entre as pernas do touro.

IV

Em baixo, contra o chão
de tijolo queimado,
os fragmentos duma estátua;
ou o construtor da casa
já sem fio de prumo,
barro, sestas pobres? quem
tentou salvar o dia,
o seu resíduo
de gente e poucos bens? opor
à química da guerra,
aos reagentes dissolvendo
a construção, as traves,
este gládio,
esta palavra arcaica?

V

Mesa, madeira posta
próximo dos homens: pelo corte
da plaina,
a lixa ríspida,
a cera sobre o betume, os nós;
e dedos tacteando
as últimas rugosidades;
morosamente; com o amor
do carpinteiro ao objeto
que nasceu
para viver na casa;
no sítio destinado há muito;
como se fosse, quase,
uma criança da família.

VI

O pássaro; a sua anatomia
rápida; forma cheia de pressa,
que se condensa
apenas o bastante
para ser visível no céu,
sem o ferir;
modelo doutros voos: nuvens;
e vento leve, folhas;
agora, atónito, abre as asas
no deserto da mesa;
tenta gritar às falsas aves
que a morte é diferente:
cruzar o céu com a suavidade
dum rumor e sumir-se.

VII

Cavalo; reprodutor
de luz nos prados; quando
respira, os brônquios;
dois frémitos de soro; exalam
essa névoa
que o primeiro sol transforma
numa crina trémula
sobre pastos e éguas; mas aqui
marcou-o o ferro
dos lavradores que o anjo ignora;
e endureceu-o de tal modo
que se entrega;
como as bestas bíblicas;
ao tétano; ao furor.

 VIII

Outra mulher: o susto
a entrar no pesadelo;
oprime-a o ar; e cada passo
é apenas peso: seios
donde os mamilos pendem,
gotas duras
de leite e medo; quase pedras;
memória tropeçando
em árvores, parentes,
num descampado vagaroso;
e amor também:
espécie de peso que produz
por dentro da mulher
os mesmos passos densos.

IX

Casas desidratadas
no alto forno; e olhando-as,
momentos antes de ruírem,
o anjo desolado
pensa: entre detritos
sem nenhum cerne ou água,
como anunciar
outra vez o milagre das salas;
dos quartos; crescendo cisco
a cisco, filho a filho?
as máquinas estranhas,
os motores com sede, nem sequer
beberam o espírito das minhas casas;
evaporaram-no apenas.

 X

O incêndio desce;
do canto superior direito;
sobre os sótãos,
os degraus das escadas
a oscilar;
hélices, vibrações, percutem os alicerces;
e o fogo, veloz agora, fende-os, desmorona
toda a arquitetura;
as paredes áridas desabam
mas o seu desenho
sobrevive no ar; sustém-no
a terceira mulher; a última; com os braços
erguidos; com o suor da estrela
tatuada na testa


Carlos de Oliveira (Portugal)

18 de junho de 2013

O MAR


O Mar em seu gracioso bailar,
Conta-me os segredos,
Aconchega-me os medos,
Do meu fantasmar!
O Mar imponente e belo
Esconde-se nos rochedos
Para que eu não o veja chorar!
Depois vem de mansinho
Tecer meu corpo de linho
Num qualquer antigo tear
Debroa minh’alma de ouro
Como se trata-se um tesouro
E canta-me uma canção d'embalar,
Num espaço lilás...sinto-me...
Contente... afogar!!!


Dinah Raphaellus (Portugal)

MUADIÊ MARIA - O NOVO LIVRO DA MARTHA

O novo livro de Martha Galrão, uma carta bahiana bem bonita:




A minha avó Mariazinha era uma cabocla bem magrinha. Com os óculos na cabeça, ela perguntava: onde estão meus óculos, você viu?
Ela tinha uma parreira no quintal e fazia saquinhos de pano para proteger as uvas dos passarinhos.
Seu nome de batismo era Maria Salomé. Gostava de medicar as pessoas, uma vez pingou remédio pra ouvido nos olhos de alguém. E deu certo.
Católica convicta, ficou doida atrás de seu Santo Antônio, uma miniatura marrom. Achou no quarto de Lito, perfilado entre os soldados em guerra no Forte Apache.
Em um dos quartos da grande casa, tinha um nicho lindo, com muitos santos e velas. Lá, rezava todas as noites, pedindo que nada faltasse aos filhos, mas que nunca ficassem ricos. Era tão amiga dos santos, que até hoje nem um bisneto conseguiu enriquecer...
Brigou com Zé Fernando, meu primo, porque chupava um picolé em dia de chuva, mas emendou na mesma frase: "Com um frio desse, menino! Me dá um pedaço ...."
A minha vó trabalhava no correio da cidade de Ubaíra. Eu ficava fascinada com tanta correspondência. Não tenho palavras pra descrever essa emoção de estar no correio onde minha avó trabalhava, na intimidade de quem toca todas as cartas.
A minha avó Mariazinha queria que eu fosse uma boa menina. Ainda sofro até hoje por não saber ser assim tão boazinha. O meu pai sempre falava: dona Mariazinha era uma santa!

Eu enjoada, vomitando a alma, deitada no colo da minha avó. A minha avó fazendo o sinal da cruz onde afligia e dizendo: Nossa Senhora passou por aqui com seu cavalinho comendo capim.

Martha Galrão (Brasil - Bahia)

POEMA DE EUGÉNIO DE ANDRADE, COM TRADUÇÃO EM INGLÊS


O SILÊNCIO

Quando a ternura
parece já do seu ofício fatigada,

e o sono, a mais incerta barca,
inda demora,

quando azuis irrompem
os teus olhos

e procuram
nos meus navegação segura,

é que eu te falo das palavras
desamparadas e desertas,

pelo silêncio fascinadas.


Eugénio de Andrade




SILENCE

When tenderness
seems tired at last of its offices

and sleep, that most uncertain vessel,
still delays,

when blue bursts from
your eyes

and searches
mine for steady seamanship,

then it is I speak to you of words
desolate, derelict,

transfixed by silence. 

Eugénio de Andrade
Translated by Alexis Levitin

16 de junho de 2013

POEMA DO MAR



O drama do Mar,
O desassossego domar,
                         sempre
                         sempre
                        dentro de nós!

O Mar!
cercando
prendendo as nossa Ilhas!
Deixando o esmalte do seu salitre nas faces dos pescadores,
Roncando nas areias das nossas praias,
Batendo a sua voz de encontro aos montes,
baloiçando os barquinhos de pau que vão Poe estas costas...

O Mar!
pondo rezas nos lábios,
deixando nos olhos dos que ficaram
a nostalgia resignada de países distantes
que chegam até nós nas estampas das ilustrações
nas fitas de cinema
e nesse ar de outros climas que trazem os passageiros
quando desembarcam para ver a pobreza da terra!

O Mar!
a esperança na carta de longe
que talvez não chegue mais!

O Mar!
Saudades dos velhos marinheiros contando histórias de tempos passados,
Histórias da baleia que uma vez virou canoa...
de bebedeiras, de rixas, de mulheres,
nos portos estrangeiros...

O Mar!
dentro de nós todos,
no canto da Morna,*
no corpo das raparigas morenas,
nas coxas ágeis das pretas,
no desejo da viagem que fica em sonhos de muita gente!

Este convite de toda a hora
que o Mar nos faz para a evasão!
Este desespero de querer partir
e ter que ficar!



Jorge Barbosa (Cabo Verde)
Retirado do blogue: Poéticas ao Acaso